O projeto para se tornar atleta profissional de futebol começa (cada vez mais) cedo, carrega chance imensa de fracasso – e, com qualquer desfecho, obriga o menino candidato a abrir mão de etapas importantes da vida. Boa parte da infância se vai na preparação precoce e neurótica, que transforma crianças em trabalhadoras, sob olhar obcecado de parentes, amigos e torcedores. Em seguida, o desempenho escolar vira supérfluo, e a educação murcha confinada no desterro das desimportâncias.
Se tudo der muito certo, vai desembocar, anos mais tarde, num surrealista bife de ouro no meio do deserto.
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A cena dos jogadores da seleção brasileira, na churrascaria do chef-celebridade Nusret Gökçe, no Catar, saboreando em risonha fanfarronice um pedaço de carne salpicado pelo metal chocou muita gente. A obscena ostentação evocou críticas variadas e ratificou a alienação que envolve a elite boleira, essa tribo de endinheiradas crianças grandes.
Ah pronto, pensou você aí – mais um que vem passar pano para os boleiros. Sem chance, querides. O fato de serem artistas da bola não os exime da responsabilidade social, obrigação inegociável no mundo de hoje. A infantilização de pessoas públicas seguidas apaixonadamente por tanta gente faz mal à sociedade – e ser cúmplice dela só piora o cenário.
A elite futebolística hoje ostenta o tamanho econômico dos astros de ligas americanas, como NBA (basquete) e NFL (o outro futebol, da bola oval), e de uns poucos líderes de rankings dos esportes individuais. Em maio, a Forbes apresentou detalhada lista, liderada, pela ordem, por Messi (US$ 130 milhões anuais), Lebron James (US$ 121,2 milhões), Cristiano Ronaldo (US$ 115 milhões), Neymar (US$ 95 milhões) e Stephen Curry (US$ 92,5 mlhões). O trio dourado do futebol e dois protagonistas do basquete. O primeiro atleta de esporte individual é o recém-aposentado tenista Roger Federer (US$ 90,7 milhões), em sétimo, seguido pelo boxeador Canelo Álvarez (US$ 90 milhões).
(O maior salário de Hollywood roubaria a quarta posição no ranking do camisa 10 brasileiro. Tom Cruise recebeu US$ 100 milhões para protagonizar a bobagem “Top Gun: Maverick”. O segundo lugar, Will Smith, com seus US$ 35 milhões por “Emancipation”, ficaria na série B da lista dos atletas.)
Mas as montanhas de dinheiro das estrelas do futebol se erguem apartadas da devida consciência social. O entendimento e a prática da cidadania passam ao largo da imensa maioria dos boleiros – os brasileiros em especial. O país que não aposta na educação, da elite às parcelas mais miseráveis da sociedade, produz ídolos alienados, adultos refastelados na mais pueril quinta série.
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Veja o que já enviamosAlém das variadas competições que movem a roda da fortuna, outro jogo está sendo travado, sem intervalo nem apito final, e com infinito potencial de lucro: o da imagem. Aqui está o centro da história. Na sua visão estreita e vaidosa, os boleiros amam os bônus e têm ojeriza aos ônus – mas produzem BOs em escala industrial e terminam odiados por parcela numerosa do público.
Com motivo. Quando não protagonizam cenas como a do bife de ouro, erram pela omissão. Quase nenhum ídolo mobilizou-se na pandemia, para ensinar a população sobre uso de máscaras, isolamento social etc. (Alison, goleiro da seleção, e Bruno Henrique, craque do Flamengo, foram tímidas exceções, em vídeos sobre a importância de lavar as mãos, bem no início da crise sanitária.) Quando o futebol voltou prematuramente, aceitaram sem protestos nem questionamentos relevantes. Tampouco se posicionaram sobre as barbaridades do governo brasileiro na (ausência de) gestão no período.
Vivem ainda em negação nos assuntos de comportamento humano – a começar pela sexualidade. A “família futebol” se esconde no terraplanismo de se imaginar um ajuntamento de resolvidos heterossexuais. Não considera a possibilidade de jogadores LGBTQIA+, oprimindo e impondo sofrimento a quem não segue a mão única. A misoginia, que enxerga em cada mulher (afora a própria mãe) uma aventureira interessada somente em fama e dinheiro, também se espalha descontrolada.
Diante de assuntos como esses, ou política e religião, o placar jamais sai do 0 a 0. Craques ou pernas de pau, são todos adestrados desde a infância a não se posicionar, não se comprometer, não ter lado, silenciar em assuntos que não o campo-e-bola. Não falar é a melhor tática – #sóquenão.
O ganho de consciência, assim, é, na mais benevolente das hipóteses, tímido. Ao se permitirem cenas como a do bife de ouro, numa sociedade patologicamente dependente de imagens, derrapam feio – e reagem com as táticas de sempre, incredulidade, desprezo ou truculência. Nunca presta.
(Invocar que “o dinheiro dos jogadores é honesto” confina a questão num não-debate. Noves fora sonegadores como Neymar, o questionamento não passa por contratos assinados nem pertinência de valores pagos e recebidos. O combinado não é caro.)
E o tal bife de ouro está temperado com exagero pelo despropósito, até no parâmetro alimentar. A nutricionista Priscilla Primi, colunista d’O Globo e mestre pela USP, explica que o metal é irrelevante para a saúde – não faz mal, nem bem – e não tem sabor. Após consumido, percorre o trato gastrointestinal, até ser excretado e acabar no esgoto. Ou seja: os boleiros – liderados pelo aposentado Ronaldo Fenômeno, campeão e artilheiro de Copa pretérita – pagaram mais de R$ 3 mil (sim, o preço do bife) para produzir fezes bizarramente caras. Literal e metaforicamente.
A aventura na noite catari transformou os craques da seleção em Marias Antonietas contemporâneas. Envolvidos por um país patético, onde opulência e desperdício são modo de vida, repetiram a lenda da rainha consorte e a frase “se não tem pão, que comam brioches”. Consenso entre historiadores defende que a sentença nunca foi dita por ela, mas a fama sobrevive ao tempo. De qualquer jeito, a mulher de Luis XVI, o rei deposto e executado na Revolução Francesa, terminou guilhotinada.
A lição está na história – falta só aprender.