No extremo sul do litoral paulista, junto à fronteira com o Paraná, Cananeia é uma joia colonial que parou no tempo – fundada em 1531, é considerada a primeira cidade brasileira. Formado por diversas ilhas que fazem parte de uma reserva de Mata Atlântica tombada pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade, o município é também um paraíso preservado.
LEIA MAIS: Projeto busca expandir mercado do pirarucu da Amazônia
LEIA MAIS: Pesquisa flagra pesca ilegal de tubarões
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosPor estar no meio de um estuário, Cananeia é cercada por água salobra e 150 km de manguezais. A pesca artesanal sempre foi a base da economia da cidade e garante a sobrevivência de mais de 1000 pescadores. Viver só da pesca, no entanto, tem sido um desafio para o caiçara, que ainda depende de atravessadores para vender peixes e frutos do mar. “Eles precisam cada vez mais de outras atividades para complementar a renda. Muitos desistem”, atesta Jocemar Tomasino Mendonça, pesquisador do Instituto de Pesca (IP-APTA), vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.
[g1_quote author_name=”Arthur Artemtchonque” author_description=”Biólogo e produtor de peixes” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Como os beijupirás são peixes carnívoros, trituramos subprodutos das peixarias para sua alimentação. Além de reduzir nossos custos, prestamos um serviço ambiental, evitando o descarte
[/g1_quote]Aos poucos, porém, a realidade começa a mudar – empreendedores conectados ao universo da gastronomia paulistana, onde a moda é cozinhar produtos frescos e atestar sua origem no menu, estão encurtando a distância entre pescadores e restaurantes. Em uma ponta da cadeia, os caiçaras estão aprendendo a agregar valor aos pescados e faturar mais. Na outra, chefs de cozinha em dia com as tendências da vez recebem peixes e frutos do mar frescos e com origem garantida.
Adotado por uma família de japoneses, Paulo Hanae é um oriental que só não tem olhos puxados. Morador de Cananeia e fluente em japonês, ele ensinou aos caiçaras que vivem na Enseada da Baleia a técnica da secagem do iriko. Exemplares bem pequenos da espécie Anchoa Marinii, que não passam dos 4 cm, são pescados com redes finas como filó – os pescadores usam barcos sem motor, para não espantar os cardumes.
Depois de secos e salgados ao sol, processo que dura um dia, os peixinhos estão prontos para consumo. Em lojas de produtos orientais de São Paulo, o pacote de 100 gramas custa em torno de R$ 10. “Japoneses e chineses usam o iriko como base para caldos, enquanto os coreanos os preparam marinados em shoyu e gengibre”, diz Hanae. A demanda crescente permite que famílias inteiras de caiçaras vivam do iriko. Ao longo de 10 dias, com ajuda dos parentes, o pescador William Xavier, 29, consegue juntar cerca de 150 quilos de peixinhos secos.
Hanae também ensinou aos caiçaras que a ova das tainhas, transformada em botarga, vira uma fina iguaria. As mais bonitas são vendidas inteiras – no site www.raizcaicara.com.br, que distribui a linha de Hanae, uma peça de 100 a 120 gramas é vendida por R$ 50. As demais viram botarga em pó ou patê, que leva o nome de shiokará. A chef Tatiana Szeles, do restaurante Marcha e Sai, em São Paulo, é cliente assídua. “Já servi purê de mandioquinha com vieira salteada na manteiga e botarga em pó, e ovo cozido em baixa temperatura com shiokará. Mas, em casa, gosto mesmo é de comer o shiokará de colher”, confessa.
Filho de pescadores, o curitibano Jefferson Maraschi, da Defumado Caiçara, é outro que está investindo na defumação. Peixes como tainha, anchova, robalo e bagre branco, além de camarão e ovas, são salgados, desidratados e defumados em seu próprio quintal. O processo todo leva até 30 horas. Maraschi também cuida da comercialização. Além de receber pedidos por email (defumadocaicara@gmail.com) e despachá-los pelo correio, ele circula pelas ruas de Cananeia pilotando uma curiosa bicicleta-barco – o quilo de peixe defumado custa de R$ 80 a R$ 100, dependendo da espécie.
O negócio do biólogo marinho Arthur Artemtchonque, ao contrário, é vender peixes fresquíssimos – com a mulher, a oceanógrafa Keila Araújo, ele cria beijupirás, espécie cada vez mais valorizada pela gastronomia. Em um grande tanque armado diante de casa, o casal engorda os peixes ao longo de 1 ano e meio, até que atinjam cerca de 5 quilos. A alimentação, fornecida duas vezes por dia, é natural, sem traço de ração. “Como são peixes carnívoros, trituramos subprodutos das peixarias. Além de reduzir nossos custos, prestamos um serviço ambiental, evitando o descarte”, diz Artemtchonque. O abate (ou despesca, como os caiçaras preferem) também segue protocolos de bem-estar animal – os peixes são retirados do tanque e imediatamente colocados em tinas com gelo. “O frio amortece o peixe na hora e ele morre sem estresse, o que é inevitável quando o processo é por asfixia.”
Os principais clientes do casal são distribuidores especializados, que pagam R$ 50 pelo quilo e vendem os pescados a restaurantes japoneses. O transporte não leva mais do que 5 ou 6 horas, o tempo exato de estrada entre Cananeia e São Paulo. “Chega tão fresco que os clientes consideram peixe vivo. Vai tudo para sashimis”, orgulha-se o produtor.
Frescor é também o trunfo das ostras que a Guará Vermelho distribui para restaurantes paulistanos – elas saem dos mangues de Cananeia e chegam às cozinhas no mesmo dia. Há sete anos à frente da empresa, o zootecnista Ricardo Magalhães trabalha em parceria com ostreicultores dos manguezais de Cananeia e vem ensinando novas técnicas de manejo que aumentam a produtividade.
Herdeiro do ofício que aprendeu com o pai, ainda na infância, João Batista Leal, 53, é um desses parceiros da Guará Vermelho. Em viveiros montados pouco abaixo da linha d’água, ele engorda os moluscos que extrai um a um das raízes das árvores do mangue. “Faço isso desde os 7 anos. Quando meu pai adoeceu, era assim que eu sustentava a família”, conta Leal.
Com a Guará Vermelho, ele aprendeu que também pode cultivar ostras a partir de sementes desenvolvidas em laboratório e adquiridas em grandes quantidades. “Dessa forma, conseguimos ostras nativas com casca mais uniforme, o que o mercado valoriza. E o ostreicultor ganha escala, por não depender só da extração”, explica Magalhães.
Entre seus clientes mais fieis está o premiado chef Tsuyoshi Murakami, que inaugurou seu novo restaurante, o Murakami, em São Paulo, em setembro. “As ostras são firmes e mais delicadas do que as de cativeiro. Sirvo in natura com uma gotinha de limão, mas também ficam ótimas com um toque de yuzu [cítrico japonês], molho ponzu, wasabi ou missô. Na verdade, elas vão bem com tudo.”