Bastava sentar na mesa do bar e dar alô pra turma: em menos de dez minutos começava o show. No início achei que era assim mesmo, papo de botequim, mas depois reparei que era comigo. Foi então que descobri ser um para-raios de peripécias sexuais. Infelizmente não em proveito próprio, mas das contadas por outros.
Não sei de onde vem esse dom: homem, mulher, trans, tiozão, novinha, todo mundo queria me contar alguma epopéia na cama onde o herói, é claro, era quem contava. Minha mãe me diz que tenho cara de crédulo (bobo foi a palavra que ela usou, mas prefiro imaginar que foi no sentido de crédulo). O fato de não beber não me ajudava. Acho que as pessoas preferiam contar suas supostas proezas para o único sóbrio por perto, garantindo a eternidade da sua lenda, mesmo que não pelos motivos que gostariam.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Não sei se vocês tiveram o desprazer de notar que agora o carioca da zona sul é um sommelier por natureza. Aqueles sujeitos que ainda ontem não sabiam distinguir Sangue de Boi de Romanée-Conti hoje balançam taças ao leo e encontram aromas florais com notas de raposa molhada até em garrafas de água sanitária
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Veja o que já enviamosA falha na maioria dos relatos não era a bizarrice, a escatologia, a falta de noção. O problema era a verossimilhança. Um zé ruela, mais feio que bater na mãe, ter uma noite incrível com duas mulheres era improvável mas não impossível. Mas o sujeito, zé ruela que era, não sabia onde parar a cascata, fazia questão de dizer que as duas foram a Juliana Paes e a Fernanda Lima. A história dele, que até aquele momento faria um bonito num programa erótico do Multishow acabava se tornando um documentário do Discovery channel sobre mitômanos. Um ou outro sabia dar uma narrativa decente aos casos, o que os tornava ao menos palatáveis, ainda que continuassem duvidosos. Infelizmente, a maioria era só chateação, delírios e aluguel de orelha.
Vinte anos se passaram e troquei os pés sujos por restaurantes. Coisas da idade. Os amigos também envelheceram e suas peripécias sexuais, graças a Deus e apesar do Viagra, diminuíram. Mas, como sempre acontece comigo, veio coisa pior.
Agora todo mundo quer contar histórias sobre vinhos. Sim, por que não sei se vocês tiveram o desprazer de notar que agora o carioca da zona sul é um sommelier por natureza. Aqueles sujeitos que ainda ontem não sabiam distinguir Sangue de Boi de Romanée-Conti hoje balançam taças ao leo (com trocadilho) e encontram aromas florais com notas de raposa molhada até em garrafas de água sanitária.
Basta sentar na mesa do restaurante e cumprimentar os comensais: em menos de dez minutos começa o circo. Os diferentes taninos, as melhores vinícolas, os decantadores mais adequados etc. A cara de bobo não falha. Todo mundo quer me dar uma aula sobre a matéria. E já que todos os cariocas têm PhD no assunto, não falta professor qualificado. Aquele zé ruela das duas mulheres agora é um respeitável gerente de TI que se diz capaz de diferenciar o terroir de cada CEP francês. Mais uma vez o problema da verossimilhança. As histórias dele saíram do Discovery Channel e entraram no Scy-Fi, aquele canal de ficção científica. Na verdade o seu grande feito foi dar um giro de 360º na própria chatice.
Mesmo avisando que não bebo álcool, que não tenho o menor interesse no assunto eles não desistem, são como zumbis de filme, você espanta um que só fala das vinícolas de Mendoza e aparecem outros dez pra te contar sobre Napa Valley.
Tenho muito medo do que a minha cara de bobo me reserva daqui a vinte anos.