Rio de Janeiro, alta temporada, férias escolares e o verão escaldante que faz a fama da cidade. Gabriel*, assim como a maioria dos cariocas e turistas, só queria aproveitar um dia de sol nas praias da Zona Sul, a dos cartões postais que correm o mundo. Juntou-se a um grupo de amigos para o programa – mas não chegou ao destino: ele e os colegas foram retirados do ônibus por policiais militares da Operação Verão (OV) e levados para a Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira, no Centro, distante da orla. O grupo não recebeu qualquer explicação dos agentes do Estado.
Leu essa? Sobre ter negado o direito à cidade
Ao chegar, a equipe da instituição confirmou o que ele havia relatado (em vão) aos policiais: os responsáveis de Gabriel sabiam do passeio na praia e o jovem está matriculado numa escola. Durante todo o processo, ele chorava, nervoso e com medo, achando que estava “preso”.
João* passou pela mesma situação. Estava indo à praia de Copacabana, no dia 25 de novembro, para competir na semifinal do Beach Soccer Sub-20 pela Liga das Promessas. A preocupação com o rendimento do time pré-jogo deu lugar ao medo de ser considerado criminoso apenas por andar pelas ruas da Zona Sul. Foi impedido de participar da competição por agentes da OV e levado para a recepção da Central, assim como Gabriel.
Gabriel e João são nomes fictícios, escolhidos para proteger personagens de histórias reais. Os dois jovens fazem parte do grupo de 89 jovens levados até a recepção na Central Carioca por policiais da Operação Verão, em cinco dias diferentes, entre novembro e dezembro do último ano. As informações constam de Ação Civil Pública do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), documento que cobra explicações quanto à violação de direitos de crianças e adolescentes desde o início da Operação. Segundo o requerimento, “praticamente todos eram negros”.
A ação reivindica que o município do Rio de Janeiro indenize menores que tiveram seus direitos violados. O pedido teve respaldo em notificação da equipe técnica do centro de acolhimento, que resumiu os casos brevemente. Não foram divulgadas informações quanto à data de entrada e saída dos centros de acolhimento, idade, procedência, ônibus nos quais foram apreendidos, tempo de detenção e momento da liberação.
O enfoque da notificação foi na ação policial, repetida em todos os casos como “retirado do coletivo com outros colegas quando ia/retornava da praia”. Também foram priorizados dados sobre a família da vítima e se estava matriculado em escola, para aferir condição de vulnerabilidade. A última frase conclui os breves resumos e revela dado comum a quase todos: “Não foi identificada necessidade de acolhimento institucional”. Segundo a equipe técnica, dos 89 jovens apreendidos nos cinco dias analisados, apenas um deles apresentava motivo para recolhimento.
Além disso, o MP aponta os impactos das abordagens nos jovens: “A ação estatal gerou ansiedade, medo e trauma aos adolescentes ‘recolhidos’, bem como preocupação a todos os outros e suas famílias, que se reconhecem como público ameaçado e alvo de perfilamento racial”. Complementam, ainda, que os menores acreditavam estar presos. “Registramos a entrada de adolescentes assustados, temerosos, e sem entender o que estava acontecendo, repetindo as frases: ‘a gente não fez nada’, ‘estou preso?’, ‘estou com medo’. Estavam irritados com a situação e sentiam vergonha. Sentiam-se apreendidos, mesmo sem estarem praticando qualquer ato infracional”.
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Veja o que já enviamosA Operação Verão tem como protocolo a abordagem em ônibus que passam próximos a comunidades periféricas e levam às praias da Zona Sul. A decisão de apreender menores surgiu após onda de assaltos e arrastões na região, e a prática foi endurecida pelo caso de um empresário agredido e assaltado (ocorrência documentada por câmeras de segurança) em Copacabana, no final da tarde de 2 de dezembro. Como resposta, moradores do bairro se organizaram para agredir aqueles que consideravam suspeitos — meninos negros, pobres e periféricos.
Os criminosos, que se consideravam “justiceiros”, adotaram critérios similares aos dos agentes da segurança pública. Conforme Ação Civil do MPRJ, “ficou evidente o padrão que costuma caracterizar ‘elementos suspeitos’: camisas de times, bermudas, boné, cabelos pintados ou descoloridos. Além disso, andar sozinho ou acompanhado em horários diversos, o veículo que se dirige, de carros ou motos, ou seja, atividades comuns para qualquer pessoa não negra”.
A premissa para o encaminhamento desses jovens seria a de que estariam sendo levados por andar sem documento de identidade ou desacompanhados do responsável. Entretanto, a medida viola o direito previsto no art. 5º, LXI, da Constituição Federal: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.
A Conselheira Tutelar, educadora social, pedagoga e advogada Patrícia Felix de Lima acredita que não é naturalmente tolerado, pelos moradores dos bairros litorâneos, que pessoas negras frequentem praias e locais de lazer. “O Conselho Tutelar (CT) da Zona Sul do Rio de Janeiro é muito requisitado, por ser local turístico, e tem gente de todo tipo — do bilionário à pessoa em situação de rua. A sociedade, quando tem tom higienista, não consegue identificar se aquela população está em situação de vulnerabilidade ou se é uma pessoa negra e periférica”, argumenta ela. “De segunda a sexta, para ir trabalhar e ser subalternizado, tudo bem; mas o filho desse empregado não pode ter acesso ao lazer nem direito à cidade. Sabemos que a questão dos arrastões é real, mas não dá para promover a segurança pública negligenciando o direito de viver”.
O Conselho Tutelar é um órgão público que busca garantir o respeito aos direitos de crianças e adolescentes. Seu trabalho é representar a sociedade na defesa de vida, saúde, educação, lazer, liberdade, cultura, convivência familiar e comunitária. O CT da Zona Sul tem lutado pela integridade de menores apreendidos e levados a centros de acolhimento apenas por circularem na região ou nos acessos às praias. A instituição foi responsável por noticiar ao MPRJ o protocolo de apreensões realizadas pelos agentes.
“Essas ações arbitrárias vão muito além do veto ao direito de ir e vir. Causa traumas nesses jovens a partir da humilhação e da violência psicológica. A sociedade civil classista acha que pelo fato de morar no Leblon e pagar oito, nove mil de IPTU, pode impedir quem usa o coletivo de chegar na praia. Continuaremos no combate a esse Apartheid — regime de segregação racial — que quer se instaurar no Rio de Janeiro”, complementa a conselheira tutelar.
Operação Verão é investigada desde a primeira edição
A OV começou em 2015 e, na época, já era acompanhada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) pela apreensão indiscriminada de adolescentes. O coordenador de Infância e Juventude da Defensoria, Rodrigo Azambuja, explica que um neologismo popular na época definiu a atuação ilegal. “Os meninos atendidos relatavam que eram levados para ‘sarqueamento’, consulta que era realizada, até o desenvolvimento do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), para verificar seus antecedentes criminais”, explica.
Assim como Gabriel e João, eram jovens negros e pobres transitando em locais onde moram pessoas de classe média e alta, e que no imaginário dos policiais não seriam naturais daqueles bairros, relata Rodrigo. “Com base nesse olhar de que não eram residentes, sofriam a intervenção. Tínhamos conhecimento disso porque, uma vez na delegacia, não era aferida ordem de detenção para os jovens, e quando não conseguiam entrar em contato com a família para buscá-los, os conselheiros tutelares eram acionados. A partir daí, os conselheiros documentavam as situações e noticiavam a Defensoria Pública”. Processo similar ao que foi registrado nos centros de acolhimento no fim de 2023 e encaminhado ao MPRJ.
Segundo Rodrigo, levar aos centros de acolhimento e não a uma delegacia faz parte de uma nova “roupagem” nas ações da polícia para praticar, em suma, o mesmo ato: deter e impedir que esses jovens acessem locais de lazer da Zona Sul, como as praias. “Começou com a história do sarque, mas foi evoluindo. Eles levavam os meninos que eram apontados como possíveis infratores para abrigos, com a prerrogativa de que estariam em situação de vulnerabilidade”, narra Rodrigo.
A conselheira tutelar Patrícia Felix reforça que desde 2015 o CT combate a prática. Segundo ela, a diferença é que “dessa vez, a preocupação maior é que houve esse movimento dos “justiceiros”, motivado também pela Operação Verão. “A gente não vai minimizar os problemas com arrastões, mas a segurança pública não se aplica metendo porrada em preto e pobre, negligenciando os direitos das nossas crianças e adolescentes. Não é um modelo de segurança pública para ninguém”.
Cronologia da batalha judicial contra ações da Operação Verão
No dia 7 de setembro de 2023, a Prefeitura do Rio iniciou a Operação Verão. Realizada pela Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) e Guarda Municipal (GM-Rio), o objetivo era “reforçar ações de ordenamento, as fiscalizações das posturas municipais e o patrulhamento preventivo, além de proporcionar mais segurança à população, tanto no deslocamento até as praias, quanto na permanência nelas”, como informa o portal da Prefeitura. Conforme Ação Civil Pública do MPRJ, foram 89 jovens encaminhados para a Central de Recepção Adhemar Ferreira de Oliveira nos dias 25, 26, 29 e 30 de novembro, 2 e 3 de dezembro, sem flagrante de ato infracional ou hipótese de vulnerabilidade.
No dia 2 de dezembro, com a Operação em curso, um empresário foi agredido e assaltado em Copacabana. O caso gerou revolta em moradores da região, que se organizaram em grupos autodenominados “justiceiros”, que saíram pelas ruas na noite de 5 de dezembro para agredir aqueles que consideravam suspeitos. Nesse contexto, forças de segurança estaduais e municipais intensificaram abordagens e reforçaram o policiamento da Operação Verão no bairro.
No dia 11, em resposta ao documento do MPRJ, a juíza Lysia Maria da Rocha, titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, proibiu a apreensão de adolescentes sem flagrante durante a Operação Verão. Após a decisão ser publicada, o governador Cláudio Castro anunciou que recorreria. “Pela decisão, primeiro se espanca, mata e depois se atua? Pode isso estar certo?”, publicou nas redes sociais. O prefeito Eduardo Paes também se posicionou nas redes, em concordância com as falas do governador, com o argumento de que o trabalho das forças policiais “auxilia na prevenção a crimes que ameaçam a sociedade”.
Atendendo aos governantes, dia 16 de dezembro o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Ricardo Rodrigues, autorizou, por liminar forças de segurança a apreender e conduzir menores, mesmo sem flagrante. A decisão revogou a proibição da juíza Lysia. No mesmo dia, as deputadas Talíria Petrone (federal) e Renata Souza (estadual), do PSOL-RJ, entraram com representação no MP-RJ e no Ministério Público Federal para derrubar a decisão judicial.
“Já havia uma decisão do STF dizendo que apreender sem flagrante de delito ou sem mandado judicial é ilegal, então nossas ações reafirmam aquilo que a Suprema Corte já tinha determinado. Além disso, desenvolvemos relatório para a Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos, para observarem a situação que o Brasil impõe à juventude negra”, explica Renata Souza. Mulher negra que atua na defesa dos Direitos Humanos há mais de 20 anos, ela não vê eficiência na Operação Verão. “A ação parte de uma perspectiva racista, na qual perfilam o inimigo, os supostos criminosos, como jovens negros de favela e periferia. Ao traçar este perfil, percebe-se um caráter discriminatório, e não de segurança pública, cujo objetivo é assegurar o direito de ir e vir a todos os que desejam ir à praia”.
Em 20 de dezembro, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu a liberação de crianças e adolescentes em reclamação constitucional ao STF. Em meio a decisões e vetos nessa batalha judicial, jovens negros continuaram sendo apreendidos sem razão aparente pela polícia carioca. Mas, após a virada do ano, novo movimento judicial apontou arbitrariedade e ilegalidade nas ações da Operação Verão: no dia 6 de janeiro, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, protocolou reclamação ao Supremo, pedindo a derrubada da decisão do TJ-RJ.
O resultado chegou no mês seguinte. No dia 21 de fevereiro, o STF voltou a proibir a apreensão de menores sem flagrante no Rio. O despacho, do ministro Cristiano Zanin, restabelece a decisão inicial da 1ª Vara da Infância, Juventude e Idoso do Rio de Janeiro. O estado e o município, que defendiam as ações, terão que apresentar plano de segurança pública que não viole os direitos de crianças e adolescentes.
Inconstitucionalidade permanece em casos de jovens que já atingiram a maioridade
Richard Douglas Carvalho estava num ônibus a caminho da Praia de Copacabana, quando foi abordado, na saída do Túnel Novo por PMs, no dia 5 de dezembro passado — na mesma semana em que forças de segurança intensificaram abordagens devido ao crime no mesmo bairro e o caso dos “justiceiros”. Negro, 21 anos, ele ouvia música nos fones de ouvido quando os agentes o mandaram descer do coletivo. “Por que tenho que descer se paguei minha passagem? Você está impedindo meu direito de ir e vir”, questionou. Em vão: foi arrancado à força do ônibus pelos policiais. Apresentou a carteira de trabalho assinada e identidade, mas ouviu de um dos agentes que a “carteira de trabalho não é nada, um papel em branco”.
“Percebi que ele queria me prejudicar, então fiquei quieto. Fui abordado por dois policiais, mas havia cerca de dez na saída do túnel, e todos foram coniventes. Se pelo menos um entende da lei, porque eles estudaram para isso, deviam impedir o colega de farda, mas não foi o que aconteceu”, relata Richard. “Sofri uma abordagem racista e abusiva. E se fosse o caso de ser alvejado, eles não fariam nada? Fui ameaçado de que levaria um tiro na cara pelo policial e nenhum deles interveio”, denuncia o jovem.
Depois, os policiais pararam outro ônibus, juntaram um grupo de quatro meninos e os conduziram para a 12ª DP (Copacabana). Enquanto aguardavam, Richard tentava entrar em contato com a mãe, Deize Carvalho, quando o telefone da unidade tocou e, em seguida, os agentes liberaram os jovens que esperavam a verificação de ficha criminal. Mas Richard decidiu ficar porque queria abrir um boletim de ocorrência contra os policiais que o conduziram.
Entretanto, foi impedido. “Disseram que estavam ocupados demais para pouca coisa”, explica. Quando a mãe e a chefe do trabalho chegaram, um dos agentes mostrou folha impressa com os antecedentes criminais de Richard, todas cometidas quando ainda era menor de idade e com penas cumpridas. Realizaram a prática de sarqueamento com o jovem e ainda arrancaram o prontuário da chefe dele. “Deram esse documento que é restrito, somente para uso do poder público. Quando minha chefe questionou a outro policial o motivo, foi informada que o papel é confidencial e que ela poderia ser presa por isso. Se fosse contra mim, por ser branca e empresária, dariam mais ouvidos a ela. Mas como estava ali para me ajudar, pegaram o papel de volta, à força”.
Richard perdeu confiança em quem tem como função proteger a população. “É uma frustração enorme, como posso curtir um lugar à noite sabendo que sou perseguido? Como vou no mercado fazer uma compra sabendo que a qualquer momento posso ser vítima de novo?”. Ele expurga a raiva que vive e presencia através do Hip Hop, como MC Bené.
“Sofro abuso de autoridade
Sempre pergunto cadê a igualdade?
Rio de Janeiro, terra de massacre
A corrupção que dominou a cidade
O que acontece no alto do morro
Inocente atingindo de novo
O presidente engana meu povo
Polícia descendo com corpo de novo”
Trecho da música “Abuso de Autoridade”, de Richard.
*Nomes fictícios. Perfis escritos com base em resumo de casos em Ação Civil Pública do MPRJ.