Um dia de revelação em Nova York

Timothee Chalamet, Elle Fanning e Woody Allen durante as gravações de “Um dia de chuva em Nova York”. Foto Divulgação

No novo filme de Woody Allen, os segredos nem tão íntimos de uma apaixonante cidade

Por Carla Rodrigues | ODS 11 • Publicada em 5 de dezembro de 2019 - 11:53 • Atualizada em 5 de dezembro de 2019 - 13:18

Timothee Chalamet, Elle Fanning e Woody Allen durante as gravações de “Um dia de chuva em Nova York”. Foto Divulgação
Timothee Chalamet, Elle Fanning e Woody Allen durante as gravações de "Um dia de chuva em Nova York". Foto Divulgação
Timothee Chalamet, Elle Fanning e Woody Allen durante as gravações de “Um dia de chuva em Nova York”. Foto Divulgação

Há muitas camadas de interpretação para “Um dia de chuva em Nova York”. A primeira, mais evidente, é a nostalgia com notas melancólicas de seu diretor, Woody Allen. Os temas da sua extensa filmografia se misturam com a cidade pela qual fez diversas declarações de amor. Desde “Annie Hall” (1977), passando por “Manhattan” (1979), e mesmo que Allen tenha depois se aventurado a filmar em Londres, Barcelona e Roma, Nova York e seus personagens são o cenário mais marcante dos filmes do diretor. Para além do saudosismo e da comédia romântica – que funciona como guia para o protagonista fazer o espectador percorrer um roteiro muito específico da cidade, incluindo hotéis e bares cujo charme é estarem à beira da decadência –, existe também o que vou chamar de conflito de gerações.

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Do par romântico de jovens universitários, ele nascido em Nova York, ela no Arizona, surgem dois aspectos que gostaria de considerar no filme. O primeiro, mais evidente, é o desprezo dela por Nova York. Não consegue decorar o nome dos lugares clássicos, não entende exatamente as razões para que o namorado considere a cidade tão especial, e muito menos tem qualquer referência de lugares que o mundo inteiro celebra, como o Central Park, por exemplo. Em vez de se encantar pela Nova York de Allen, ela vai se perdendo num deslumbramento com o mundo do cinema em relação ao qual o filme mostra profundo desprezo.

Cartaz do filme “Um dia de chuva em Nova York”. Reprodução

O segundo aspecto do conflito de gerações aparece na dificuldade da relação entre o jovem nova-iorquino e sua mãe. Gatsby Welles pretende passar o fim de semana escondido na cidade para não precisar comparecer à festa que ela está promovendo. Tem pelos valores da família um profundo desprezo: elite endinheirada falando bobagens e exaltando um tipo de arte que não significa nada. É mais ou menos assim que ele define a própria família, reunida em torno de causas beneficentes e culturais que exaltam qualquer causa, desde que esteja em alta no mercado. É também assim que Gatsby divide a cidade: revisita aquilo que tem história e está sendo apagado em prol da última novidade. Nesse ponto, qualquer carioca apaixonado pelo Rio de Janeiro pode se identificar com a nostalgia de Allen, passeando pelos escombros de uma cidade sobre a qual o mercado não se cansa de reescrever sua história. Ou mesmo um leitor das Passagens, de Walter Benjamin, pode identificar as camadas históricas que insistem em não ser apagadas, como fez o filósofo em relação a Paris. Nessa crítica ao capital, que por um lado vilipendia a arte e,  por outro lado, destrói a cidade, aparece a figura materna de Gatsby.

[ contém SPOILER a partir daqui ]

A mãe de Gatsby nos é apresentada pelo seu filho, desde o início do filme, como representante de uma elite rica e ilustrada, porém superficial e pedante. Mas é em torno desta casta que a vida cultural da cidade se movimenta e, em certa medida, depende, já que são estes os patronos da arte e da inteligência nova-iorquina. Ele se rende a obrigação de ir à festa depois que sua presença na cidade é descoberta pela família. Como sua namorada ainda não está disponível, Gatsby paga uma garota de programa para acompanhá-lo. Sua mãe imediatamente identifica que a moça não pode ser uma universitária do interior e chama o filho para uma conversa que, a meu ver, é o ponto alto do filme, a camada a mais de interpretação que o trabalho de Allen oferece.

Num tom de revelação, a mãe diz a Gatsby que ela mesma começou a vida em Nova York como uma prostituta, pela qual o pai de Gatsby se apaixonou. Desde que casaram e ela teve os filhos, havia se dedicado não só a apagar completamente esse passado como a oferecer o melhor acesso a educação, cultura e tudo aquilo que o filho estava deliberadamente desprezando. Quando o segredo vem à tona, espanto de Gatsby contagia o espectador, que ao fim e ao cabo não esperava que de uma comédia romântica Woody Allen nos dissesse que a glamorosa, inteligente e rica Nova York é um lugar cuja origem precisa ser repetidamente recalcada para que, escondendo esse segredo, a elite mais uma vez se reafirme no poder. Uma cidade filha da puta.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

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