O litoral de praias faiscantes, que se estendem por 46 quilômetros, e a Mata Atlântica opulenta espalhada por serras e montanhas, atrações turísticas tradicionais, hoje têm companhia em Maricá. Nas ruas do município que abre, a partir do Rio, a Região dos Lagos fluminense, circulam ônibus vermelhos com a inscrição “Tarifa zero” pintada na carroceria. Nenhum passageiro paga para viajar, um sonho em plena vida real.
Os 200 mil habitantes (e quem mais chegar) contam com o serviço gratuito desde 2014, na primeira gestão do PT, que ficará no poder até pelo menos 2028. A implantação se deu na gestão do hoje deputado federal Washington Quaquá (de volta ao executivo municipal em 2025), e deu fama nacional ao desconhecido balneário, ofuscada historicamente na região por Búzios e Cabo Frio.
Maricá tem outra característica famosa: é a cidade que mais recebe royalties do petróleo no país. Em 2024, serão R$ 2,4 bilhões, mais de 70% do orçamento municipal. No caso específico dela, parte da montanha de dinheiro banca o sistema de transportes, garantindo a universalização do serviço – além de um quentinho no coração dos moradores de lugares onde reinam a bandalheira, a incompetência e a corrupção (caso do acima assinado).
O modelo troca a sustentação do sistema, da venda de passagens para a lógica da prestação de serviço por quilômetro rodado. Assim, o passageiro que precisa chegar em pontos remotos, distantes da maioria, não fica abandonado.
Ah, mas é caro para os cofres públicos sem a vitamina dos royalties, alegará um fiscalista. Nada disso, assegura Giancarlo Gama, ativista e cientista político (nessa ordem) que acaba de concluir mestrado na Universidade de Oxford sobre o tema. “Sai mais barato do que transportar lixo”, atesta, contabilizando que, em 114 cidades com o serviço no país (analisadas em sua pesquisa), a média de investimento público diário por passageiro fica em R$ 0,12. O dado consta do trabalho final de mestrado que desbravou cada uma das cidades que viabilizou a política pública. Em 88% delas, a adoção da tarifa zero foi financiada completamente com recursos existentes, sem royalties, novos impostos ou taxas. Nenhuma empenhou mais de 3% do orçamento municipal.
Estranhou o número de municípios? Pois já tem mais. Desde a pesquisa acadêmica de Gama, outros três embarcaram na mudança, consolidando o Brasil como o país com mais oferta do serviço no planeta. Hoje, cerca de 150 cidades no mundo fazem transporte público gratuito, e 117 estão aqui. A maior é Caucaia (CE), na região metropolitana de Fortaleza, com pouco mais de 355 mil habitantes. E, seja qual for o tamanho da população beneficiada, a medida pavimenta caminho sem volta. “Houve reeleição de prefeitos em 89% dos lugares com tarifa zero”, afere Gama.
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Veja o que já enviamosO discurso conservador argumenta que a política só é viável para lugares pequenos, e deixa na chuva os milhões de brasileiros das metrópoles, ajuntamentos onde seria impossível implantar a tarifa zero. As populações desses lugares estariam, assim, condenadas ao calvário da permanente crise superfaturada de ônibus, trens, metrôs e barcas sucateados, geridos por empresários sem ética e políticos cúmplices da incompetência desonesta. O pesquisador discorda. “Haveria, evidentemente, complexidades, mas além de viável, implementar a mudança garantiria bem-estar e direito à cidade para as pessoas além de ganho político aos governantes”, avalia. “A tarifa zero está na mesma prateleira do fim da escala 6×1”, alerta ele, referindo-se à nova causa trabalhista que mobiliza o país.
As grandes regiões metropolitanas são hoje reféns de sistema em estado terminal. O número cadente de passageiros obriga a constantes aumentos nas passagens, produzindo círculo vicioso que inviabiliza o serviço dentro do modelo convencional. “A concessão remunerada por número de usuários está falida”, constata o pesquisador, garantindo que mesmo trens e metrôs podem se inserir. “Usar o quilômetro rodado como referência serve a todos os lados, porque também dá mais segurança às empresas”.
Mas se engana quem imagina que a revolução nos transportes públicos está apenas, como no exemplo de Maricá, entre as agendas do campo progressista. “Virou pauta do Centrão”, revela Gama, a partir de levantamento de outros pesquisadores. A direita fisiológica farejou a popularidade do negócio e mergulhou de cabeça. “Políticos de União Brasil, PSD, MDB e outros perceberam o potencial de popularidade e estão adotando a mudança”, avisa ele, lembrando que a tarifa zero mobilizou jovens pelo país nas passeatas de 2013 – o início de nossa tragédia política.
Mas é óbvia pauta progressista, que ataca um dos setores onde prospera a extrema-direita: o trabalho individualizado, a escravidão contemporânea chamada uberização. O desencanto que envenena boa parte da população é terreno fértil para marcais, tarcísios, zemas, bolsonaros, caiados e outras excrescências. Espalhar um pouco de bem viver pelo andar de baixo ajudar a mudar consciências.
Jamais por acaso, a tarifa zero funciona como poderoso antídoto para a mobilidade racista, conceito difundido pelo arquiteto e urbanista baiano Paique Duques Santarém. Ele defende que o conceito do transporte coletivo no Brasil está conectado aos tumbeiros que transportavam os africanos escravizados. Na versão atual, negam aos pretos, pobres e periféricos o direito à cidade. Sem pagar, não tem como chegar. “O racismo foi vetor determinante na construção dos sistemas de mobilidade do Brasil nos últimos 100 anos”, prega Santarém.
Além disso, só a tarifa zero poderá contribuir para debelar a epidemia do trabalho por aplicativo, sanha do individualismo nas ruas e avenidas, da precarização do trabalho e da individualidade neoliberal. As cidades construídas para os carros aceleram na direção da inviabilidade, numa ciranda que precisa ser brecada. Daí, Giancarlo Gama ter encarado o desafio de tirar a tarifa zero do índex das utopias (aquele do quentinho no coração diante do ônibus de Maricá).
A vida real está necessitada urgentemente de encontrar esse novo caminho. Sem pagar passagem.