A multiplicação das temporadas de calor extremo em regiões como o Rio de Janeiro aprofunda uma das facetas da abissal desigualdade brasileira: o racismo ambiental. Índices como os 62,3º de sensação térmica, recorde aferido em Guaratiba, Zona Oeste carioca, no domingo 17 de março, atingem as pessoas de maneira diferente, a partir da condição social de cada um. Se você questionou em que momento fez tanto calor e não o sentiu na pele, deve reconhecer que é um privilegiado. Os efeitos das altas temperaturas são mais intensos para um grupo específico: pobres e pretos.
Ingrid Lisboa, de 40 anos, é o retrato desse cenário. Moradora do bairro Santa Maria, em Belford Roxo, Baixada Fluminense, a professora e mãe de três filhas está desempregada e tem enfrentado dias dolorosos. “Estou passando sufoco com a minha família. Tenho um bebê de um ano e não consigo nem dormir”, narra. Domingo (17), devo ter dado mais de 10 banhos nela, tadinha. Não para de chorar. Não tenho dinheiro para ar condicionado e o aumento na conta de luz”, desabafa.
Ela ainda cuida do pai de 82 anos. “Nos dias muitos quentes, dou banho de balde nele do lado de fora”, relata. Tentando driblar o calor, Ingrid percorre cerca de 14 km de transporte público com a filha nos braços, até a vizinha Nova Iguaçu, em busca de locais gratuitos com refrigeração. “Quando não tenho nenhuma entrega (de doces, que produz para ajudar na renda familiar), vou para o shopping e fico até 10h da noite. Mesmo assim, quando volto, está um calor insuportável. Não posso deixar minhas filhas nessa situação”.
Levantamento feito pela Enel em 2022 aponta que o uso de um ar-condicionado tipo split (modelo mais comum atualmente) de 10.001 a 15.000 BTU/h, durante oito horas diárias, pode representar uma despesa de R$ 211,93 ao final do mês, na tarifa vigente no Rio. O valor significa 15% do salário mínimo atual.
Os profissionais que invertem noite e dia também são vítimas do problema. Anderson Moura, 40 anos, é recepcionista de uma unidade de saúde no período noturno e vive com a esposa em Queimados, também na Baixada Fluminense. “Trabalho à noite e quando chego em casa, é muito quente. Boto meu ventilador na grade da janela do quarto para tentar descansar um pouco, mas isso é só na madrugada. Quando amanhece, não consigo mais dormir. Para você ter uma ideia, só consigo descansar um pouco melhor durante o dia Na cozinha. Forro o chão com um pano, ligo o ventilador e deito”, lamenta.
Para amenizar o calor e melhorar a qualidade de vida, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda 36 m² de área verde por habitante, o equivalente a três árvores. Segundo o mapa da desigualdade divulgado pela ONG Casa Fluminense, Belford Roxo e Queimados estão bem abaixo do necessário, com 5,36 m² e 19,36 m² de área verde por habitante, respectivamente. A cientista social Thaisa Sales aponta que “bairros periféricos dificilmente são arborizados e bem planejados para aguentar ondas de calor tão fortes, já que não são vistos como locais para lazer, como as áreas nobres do estado. Sendo assim, o interesse político não chega”.
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Veja o que já enviamosA pouco menos de uma hora da Baixada, as oportunidades de fugir do calor são diferentes. Moradora do Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio, Beatriz Lima possui três aparelhos de ar condicionado em casa e está a apenas 900 metros do mar. “No domingo (17) estava realmente muito quente. Usei a piscina do condomínio e fui ao shopping. Em casa, consigo utilizar ventilador e ar condicionado. No calor, fico mais irritado e com mal estar. Mesmo morando perto da praia e de árvores, sinto o impacto”, conta. Segundo o Índice de Progresso Social do Instituto Pereira Passos, o bairro está entre os 20 com melhor qualidade de vida da capital.
“As ondas de calor podem ser relacionadas ao racismo ambiental quando analisamos quais locais atingem as maiores sensações térmicas e qual estrato social sofre mais. A resposta está na população negra e baixa renda, historicamente marginalizada, que vive nesses territórios mal vistos pelo poder do Estado”, destaca a cientista social Thaisa Sales.
Sérgio Ricardo Potiguara, fundador da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e especialista na área de mudanças climáticas, explica que a onda de calor tem raízes históricas. “O Estado do Rio foi o que mais desmatou a Mata Atlântica, que na época da colonização se estendia do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul. Hoje resta apenas 12,5% da sua extensão original.”
Chuvas reforçam racismo ambiental
As fortes chuvas também têm impacto desigual (e ainda mais agressivo) sobre a população. Depois de uma semana de altas temperaturas, o Rio de Janeiro registrou oito mortes em consequência do temporal que atingiu o estado.
Endereço da maior tragédia climática da história do Brasil em 2011, a Região Serrana voltou a ser a mais afetada. Em Teresópolis, na comunidade da Coreia, dois meninos morreram, assim como quatro pessoas de uma família no bairro Independência, em Petrópolis. . Em ambos os casos, as vítimas estavam em casas construídas em áreas de risco e houve deslizamento de terra.
“Para nós, ele foi um herói que morreu salvando ela. O peso [dos escombros] ficou todo em cima das costas dele e, graças a Deus, não pegou nela. Ele trocou a vida dele pela dela”. O relato é do motorista Jonathan José de Oliveira sobre a sobrevivente Ayla, de 4 anos, e o pai da menina, Douglas José da Silva, que usou o próprio corpo de escudo para salvá-la – e acabou morrendo. A tragédia ocorreu no sábado (22), quando o prédio onde moravam desabou no temporal em Petrópolis. Além do pai, a mãe, o irmão e a avó materna de Ayla também morreram.
Jonathan José é primo de Douglas e acompanhou de perto as buscas. Logo após a retirada do corpo de Douglas, a filha foi encontrada com vida nos escombros, após mais de 15 horas soterrada. “Vi na internet que era a casa dele. Fomos tentar salvá-lo. […] O bombeiro estava tentando tirar a esposa e o enteado dele, mas não conseguiu. O laudo do IML deu que eles morreram asfixiados. Hoje de manhã [domingo] que a gente conseguiu tirar os dois. Ele morreu em cima dela, mas a salvou. […] O Douglas era um pai enorme, ficava 24 horas com a filha. Tudo o que ele fazia era em prol dela”, relata, emocionado.
A família denuncia que a Prefeitura de Petrópolis não prestou auxílio após o desabamento. “A gente teve só o apoio do governo do Estado, por enquanto. O (governador) Cláudio Castro ligou pra gente. E do governo municipal, a mesma coisa de sempre: todo ano tem uma tragédia e eles não fazem nada”, narra Jonathan, vítima do temporal que atingiu a cidade em 2022.
Algumas cenas pareceriam repetidas para os moradores de Petrópolis, não fosse o agravamento das consequências e a angústia cada vez mais intensa na população. Desde 1988, foram ao menos quatro tragédias climáticas registradas na cidade.
Parte dos petropolitanos cresceu vendo de perto enchentes, desabamentos, mortes e descaso. Jonathan perdeu a família, mas não é a primeira vez que foi vítima das chuvas. “Desde novinho vivencio isso. É revoltante. Todo ano a mesma coisa. Em 2022, fiquei 29 dias no Morro da Oficina [local mais afetado pelos deslizamentos de terra, com pelo menos 93 mortes], ajudando a tirar os corpos, tirar o pessoal, trazer água e comida. A família da minha esposa morava lá, mas graças a Deus não morreu ninguém. A gente só perdeu a casa ali, né? Dessa vez, [no bairro Independência] a gente perdeu o meu primo, a esposa, o filho, o enteado e a avó da esposa dele, que também é a nossa família, né? A gente só pede um pouco de compaixão do governo municipal”.
Por meio de nota, a Prefeitura de Petrópolis afirmou que o município “ofereceu todo apoio aos familiares das vítimas, prestando solidariedade e oferecendo auxílio com relação aos sepultamentos” e que autoridades foram no sábado (23) até a unidade onde a menina Ayla estava internada. Em relação à falta de insumos nos pontos de apoio, o executivo municipal informou “que nenhuma família ficou desassistida”, mas reconheceu que “em alguns locais, houve intercorrências logísticas, que foram sanadas”.
Tragédias como essas estão cada vez mais recorrentes, tornando o racismo ambiental evidente. “O novo normal global são as mudanças climáticas cada vez mais intensas, com a amplificação de eventos climáticos extremos, como desmoronamento de encostas, que afetam principalmente as populações mais vulneráveis do ponto de vista socioeconômico. Isso é parte da estrutura de racismo ambiental, no qual as populações de menor renda e de menor poder aquisitivo não dispõem de políticas habitacionais adequadas e saudáveis e muito menos de coleta e tratamento de esgoto”, conclui Sérgio Potiguara.