É um grande prazer abrir um livro pela primeira vez. O prazer se multiplica por mil quando o tema consegue se encaixar direitinho naquilo que vimos pensando com constância. Pois foi com grande prazer que, logo no início do isolamento forçado pela atual infecção do coronavírus, li o livro Vida urbana e saúde (Ed. Contexto), escrito pelo médico Paulo Saldiva e editado em 2018. Porque é do que se trata, no fim das contas, a quarentena que obriga a abandonar hábitos tão caros a cada um de nós. A nossa vida urbana, do jeito que conhecemos, mostrou que precisa de um olhar mais cuidadoso, não só por parte de quem administra a cidade, como por nós mesmos. Senão, ela adoece.
É preciso considerar, antes de mais nada, que 54% da população mundial, hoje, vivem em cidades. No Brasil, este número chega a impressionantes 84%. Isto é bom, porque cidades proporcionam a chance de troca. E o ser humano é gregário, precisa de outro ser humano para se enriquecer culturalmente.
Mas é justamente esta aglomeração, que por um lado amplia nossas possibilidades, que pode nos trazer desconforto. Sobretudo quando a cidade não é bem cuidada: “Falta de saneamento, contagiosidade de moléstias que chegam por mosquitos, poluição do ar, violência e premência do viver moderno. Esse é o cenário de um conflito eterno a se arrastar pelos tempos: as delícias e os sofrimentos que convivem, em perfeito entendimento, nas cidades”, escreve Saldiva, que é médico patologista.
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Veja o que já enviamosO livro tem 121 páginas e é de fácil leitura. Vou me concentrar aqui, por motivos óbvios, no capítulo em que ele fala sobre contagiosidade. O que mais impressiona são os dados históricos que mostram que “no Brasil de hoje ainda compartilhamos em muitas cidades (incluindo capitais) das mesmas tecnologias sanitárias de dois milênios atrás”. Sim, é preciso ficar atento ao novo coronavírus. Mas também é preciso ter foco na doenças que nos rodeiam, não é de hoje, pelo ar, por terra, pela água.
“A contaminação das águas urbanas por lixo também criou as condições para a propagação das doenças de transmissão direta via hídrica. O exemplo mais eloquente dessa categoria é o cólera, cujo agente causador – vibrio cholerae – é provavelmente originário da Índia”, escreve o médico.
Doenças transmitidas por insetos também continuam a assolar os ambientes urbanos. E, como estamos vivenciando em nosso cotidiano atual, é também nas cidades que as gripes ocorrem de forma mais acentuada. Já sabemos disso, já lemos sobre isso. Mas que não se perca a capacidade de ter indignação diante do fato de que o surto global da gripe espanhola, que aconteceu no início do século 20 – portanto há cem anos – foi responsável pela morte de 50 milhões a 100 milhões de pessoas.
A indignação tem motivo no fato, irrefutável, de que a humanidade, capaz de criar tecnologias avançadíssimas para a comunicação e o tratamento, não se preocupou em tentar prevenir outra pandemia como a que ocorreu há um século.
“As febres urbanas têm remédio. Para nós e para aqueles que amamos, vacinas, alimentação saudável e respeito às mensagens enviadas pelo organismo. Para os nossos gestores, a implementação de políticas eficientes de saneamento, limpeza e habitação. Para todos, prudência e bom senso”, escreve Paulo Saldiva.
O médico alerta para o fato de ele dominar mais a biologia humana do que a biologia urbana. Mesmo assim, se municia da própria experiência, como bom andarilho, para apontar os problemas. E as soluções.
Políticas urbanas que favorecem poucos e visam ao lucro máximo possibilitaram a distopia atual, da qual somos vítimas. “Faltam políticas de longo prazo, prejudicadas pela visão de lucros imediatos e por uma boa dose de ganância e falta de espírito público”, enfatiza Paulo Saldiva.
E falta também, muito profundamente, consciência coletiva. Faltam a nós, cidadãos, responsabilidade e um sentido de pertencimento. Afinal, fomos nós, “cidadãos urbanos, que criamos os problemas que nos afligem”. Este é o diagnóstico mais preciso do livro de Saldiva. E a receita não é uma única, são várias.
Vale a pena conferir.