“Jajeoi Jaguata”, do guarani para o português quer dizer “vamos caminhar juntos”. A frase está pintada ao lado de uma das salas da Escola Estadual Guarani Yvyra Ijá Tenondé Vera Miri, na zona rural de Santa Maria (RS). A instituição fica na aldeia Guaviraty Porã, uma das 62 comunidades da etnia no Rio Grande do Sul. No local, vivem 34 famílias e cerca de 170 pessoas que enfrentam problemas relacionados à infraestrutura básica, mas que resistem e mantêm sua língua, seus saberes e sua cultura.
Assim como em outras aldeias no estado, os guaranis de Guaviraty Porã (Linda Guabirobeira, em português) sofrem com a falta de materiais para a construção de casas e ausência de contato com rios e nascentes de água. Ainda assim, a comunidade indígena segue ativa na preservação e cultivo de sementes tradicionais e na confecção do artesanato.
Levantamento da Emater RS/Ascar, feito a partir de visita e diálogo com as 62 comunidades, apresenta um panorama da situação dos guaranis no Rio Grande do Sul. Os dados mostram que 92% das aldeias têm problemas nas habitações. Além disso, 37,10% das aldeias estão em situação de vulnerabilidade quanto ao acesso à água para consumo das famílias. Quase metade (46,77%) menciona a preocupação com a contaminação da natureza, por conta das atividades agropecuárias no entorno do seus territórios.
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Veja o que já enviamosA gente percebe que a natureza está mudando e a gente fica muito triste
A falta de um rio é um dos aspectos mais sentidos pelo cacique Cesário Timóteo, 47 anos. Em conversa ao pé de uma árvore, ele conta a trajetória da comunidade e a luta para conseguir acesso à terra, cedida pelo governo estadual em 2012. “O começo pra nós seria o Arenal”, relembra, sobre o acampamento às margens da BR-392, onde viviam antes as 12 famílias que fundaram a aldeia. Os dados confirmam a ausência sentida por Cesário e vivida em outros territórios da etnia, isso porquê 41,94% deles não possuem nascentes.
No território, Cesário planta melancia, milho e mandioca, cultivados com sementes ancestrais, sem o uso de agrotóxicos e com base no respeito. “Tudo que a gente faz e que mexe com a natureza, a gente pede permissão”, pontua o líder comunitário. Conforme os dados da Emater, 75,80% das comunidades guaranis conseguem manter e reproduzir sementes tradicionais.
Antropóloga e coordenadora da pesquisa, Mariana de Andrade Soares explica que o documento representa uma fotografia e revela os resultados do processo histórico e colonial de contato dos Guaranis com a sociedade não indígena. “Para que sirva como um instrumento, tanto na luta política dessas comunidades, quanto para qualificar a nossa própria ação de extensão rural e social”, complementa.
O estudo contou com apoio da Secretaria de Desenvolvimento Rural do estado e seguiu os parâmetros da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre consulta livre e esclarecida. A pesquisa foi feita por um grupo de extensionistas rurais sociais, com experiência de atuação nos 36 municípios que se justapõem às aldeias.
Quais são os desafios enfrentados pelos guaranis?
Além da escola indígena, a aldeia Guaviraty Porã também conta com uma unidade básica de saúde. Porém, essa não é a realidade da maioria dos territórios. Conforme os dados do levantamento, 70,97% das comunidades da etnia Guarani não possuem estrutura de atendimento de saúde construída para esse fim. Somente 29,03% possuem uma Unidade Básica de Saúde (UBS) construída pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) ou pelo governo estadual.
No âmbito da saúde, o documento pondera que na cosmologia Guarani, esse conceito está relacionado com uma compreensão sistêmica, o que envolve, inclusive, o acesso à terra e à plantas medicinais. Porém, 82,26% das comunidades não possuem ou enfrentam limitação de acesso a essas plantas.
Cesário Timóteo também experimenta essa dificuldade e menciona ainda as dificuldades causadas por extremos climáticos de chuva e seca que prejudicam a produção de alimentos na aldeia. “A gente percebe que a natureza está mudando e a gente fica muito triste”, aponta o cacique. Outra dificuldade frequente é conseguir apoio da prefeitura local para lavrar as terras.
No Rio Grande do Sul, 70,97% das comunidades da etnia possui educação escolar indígena, porém, destas 75% funcionam em prédios construídos para outras finalidades e 45,45%.foram avaliadas como precárias. Apenas 21% das comunidades guaranis vivem em terras demarcadas pela União, sendo que apenas 7% delas pertencem à etnia.
As potências do povo Guarani
Mariana, da Emater RS/Ascar, explica que a produção do levantamento envolveu um esforço intercultural de tradução. Além das vulnerabilidades, a pesquisa também mostra as fortalezas dos guaranis. “Procuramos trazer essa alegria de viver. O que tem de positivo, essa questão especificamente cultural deles como guardiões de sementes milenares”, descreve a antropóloga.
“No dia-a-dia, as mulheres fazem artesanato em casa e nós (homens fazemos alguma atividade também junto. Trabalho comunitário mesmo”, conta Cesário Timóteo. Na aldeia Guaviraty Porã, quando alguém precisa construir uma casa, um grupo se reúne para realizar a obra, o mesmo acontece nas épocas de plantio e colheita. O que é plantado, pontua Cesário, é voltado para o consumo interno ou para compartilhar com outras aldeias.
Na verdade, para nós não tem fronteira. É tudo parentes. Porque não fomos nós que colocamos as fronteiras
Historicamente, o povo Guarani se caracterizam pela prática da horticultura. Segundo o estudo da Emater, 96,77% das comunidades desenvolvem algum tipo de atividade agropecuária, sendo que 96,67% apresentam culturas agrícolas diversificadas.
Sobre o artesanato, os dados indicam que 96,77% das aldeias preservam os modos de saber e fazer dessa arte, que também serve como uma fonte de renda. Na aldeia Guaviraty Porã, Cesário menciona o projeto de criar uma trilha para apresentar elementos da cultura Guarani para visitantes. O objetivo é também facilitar a venda do artesanato, diminuindo a necessidade de deslocamento para fora da aldeia.
Escola e língua
Uma das características da educação escolar indígena é a adaptação das disciplinas à cultura dos povos tradicionais. Licenciado em História, Eder Henriques de Matos, 45 anos, trabalha há quatro anos na gestão da na Yvyra Ijá Tenondé Vera Miri. Além da prática bidocente, com a participação de professores indígenas, a instituição também trabalha com três línguas: guarani, espanhol e português.
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“Como se trata de uma comunidade indígena, devem ser obedecidas todas as características dessa comunidade. Então, a educação faz parte dos ritos do cotidiano em que estão inseridos, dentro desse contexto cultural”, explica Eder. Atualmente são 82 alunos, divididos entre educação infantil, ensino fundamental (anos iniciais e finais), ensino médio e Educação para Jovens e Adultos (EJA).
“A escola trabalha para que haja uma educação diferenciada, sem perder o foco do processo do aprendizado, mas que exista uma educação que respeite a ancestralidade e a cultura”, pontua o professor. Eder também menciona a busca por parcerias para promover eventos e envolver a comunidade, como formas de estimular o reconhecimento e o respeito também pela sociedade não indígena.
Cesário Timóteo enfatiza a importância de preservar a língua como um modo de não perder a capacidade de fala. Quando a reportagem do #Colabora visitou a Guaviraty Porã, a aldeia estava em meio a um processo de discussão sobre o futuro, com possibilidade de mudança de cacicado. “Quem decide isso é a comunidade”, afirma Cesário.
Enquanto conversa e mostra a aldeia, o líder se comunica com outros guaranis pelo celular e conta que existe um grupo com as diversas lideranças do Estado. Ele também revela ter familiares em outros estados e países, mas na perspectiva Guarani, essas divisões não fazem sentido. “Na verdade, para nós não tem fronteira. É tudo parentes. Porque não fomos nós que colocamos as fronteiras”.