O fim do Liebig 34, um símbolo da resistência em Berlim

A Liebig 34 foi ocupada em 1990, logo após a queda do Muro de Berlim, quando a Alemanha oriental e a ocidental foram reunificadas. Foto Mark Konig/Unplash

Expulsão de feministas de bairro alternativo põe fim a uma história de luta e produção cultural na cidade

Por Marina Oliveto | ODS 11 • Publicada em 29 de dezembro de 2020 - 09:19 • Atualizada em 3 de janeiro de 2021 - 11:53

A Liebig 34 foi ocupada em 1990, logo após a queda do Muro de Berlim, quando a Alemanha oriental e a ocidental foram reunificadas. Foto Mark Konig/Unplash

Para alguns, um lar seguro, permeado pela troca de ideias entre os pertencentes de um mesmo grupo, que pensam da mesma forma. Para outros, porém, o último reduto da cena autônoma de esquerda, um abrigo para o agrupamento de radicais violentos, um espaço onde não existem leis. Na desocupação da casa de número 34, na icônica Liebigstrasse, no bairro Friedrischain, em Berlim, os dois mundos se colidiram. Foram 30 anos de resistência. A Liebig 34 foi ocupada em 1990, logo após a queda do Muro de Berlim, quando a Alemanha oriental e a ocidental foram reunificadas e a vida dos alemães e, principalmente, dos berlinenses, mudou radicalmente. A casa localizada na parte oriental da capital foi ocupada por integrantes de movimentos como os anarquistas e os punks.

A ocupação foi legalizada no final da década, quando em 1999, a cooperativa habitacional Friedrichshain (WBF), celebrou contratos de locação dos imóveis da região com os moradores alojados, até então, ilegalmente. Nesse mesmo ano, as mulheres que viviam na Liebig 34 se autodeclararam um projeto de habitação alternativa “casa anarcha-queer-feminista”, que acolhia mulheres, pessoas trans, lésbicas e intersexuais, que passaram a viver juntas e seguindo as mesmas regras do sistema criado por elas.

O Liebig 34

Após a queda do Muro de Berlim, os moradores do lado oriental buscaram melhores condições de vida no lado ocidental, abandonando suas casas e deixando diversas edificações desocupadas. Nesse cenário de caos da reunificação, pelo menos 130 casas dilapidadas foram abandonadas, entre elas as edificações da Rigaer Strasse 94 (Riga 94), a Liebigstrasse 14 e a 34. Os grupos de jovens criativos, estudantes, artistas e integrantes de movimentos de esquerda se mudaram para esses apartamentos em situação precária.

Após a legalização do contrato de ocupação, foram dez anos de endividamento e deterioração desses imóveis. O Liebig 34 foi alvo de uma execução judicial pelo descumprimento dos pagamentos por parte da associação WBF, então proprietária do imóvel, mas que estava sendo gerida pelos herdeiros. As moradoras da casa tentaram comprar a edificação dos herdeiros, para evitar uma ação de despejo. No entanto, essa tentativa de aquisição não se concretizou. Em 2008, no entanto, quem arrendou o prédio de cincos andares, localizado na esquina das ruas Liebigstrasse e Rigaer Strasse, foi o empresário do setor imobiliário berlinense Gijora Padovicz, por 600.000 euros. As atuais moradoras celebraram um contrato de locação com o novo proprietário com o prazo de dez anos, que expirou em 2018, quando Padovicz optou pela não renovação do arrendamento, gerando a ação de despejo.

Grupos de jovens criativos, estudantes, artistas e integrantes de movimentos de esquerda se mudaram para esses apartamentos em situação precária.Foto Mark Konig/Unplash
Grupos de jovens criativos, estudantes, artistas e integrantes de movimentos de esquerda se mudaram para esses apartamentos em situação precária.Foto Mark Konig/Unplash

A cena cultural alternativa e de resistência

A aura de Berlim após a reunificação nos anos 90 atraía as pessoas a viver e visitar a capital que tinha uma marca atraente e empobrecida. A fervilhante vida cultural, boemia e artística estava veemente, com atrações de baixo custo para uma metrópole. Se por um lado a população do leste estava sendo despejada em massa pela pobreza, as minorias ideológicas passaram a ocupar este espaço vago, trazendo consigo uma cena cultural alternativa.

Essa efervescência no Friedrichshain perdurou até meados da primeira década do século 21, quando uma crise no setor habitacional levou a um boom nos valores de arrendamento imobiliário, trocando a máxima dos velhos e baratos da região, pelos imóveis renovados que passaram a atrair a classe média para o bairro. Com isso, os integrantes dos movimentos sociais que ali ainda permaneciam, pouco a pouco foram retirados dessa região próxima do centro e, como consequência, foram levados para locais mais afastados, criando diversos lugares que passaram a compor essa nova cena cultural berlinense.

As ocupações e a decadência

As casas ocupadas em um pequeno perímetro do Friedrichshain se tornaram alvo de discussão judicial desde o início dos anos 2000. A Riga 94 foi vendida duas vezes nesses 30 anos e, em diversas tentativas, a casa foi parcialmente desocupada, mas logo foi invadida novamente. Outros imóveis foram oferecidos para os moradores ilegais, mas eles resistem à saída do bairro e, principalmente, do quarteirão das habitações populares.

A Liebig 34 e a Riga 94 são os últimos projetos habitacionais da cena radical de esquerda sobreviventes em Berlim. Ao longo dos últimos 30 anos, a Liebig 34 se tornou um símbolo mundial da resistência e habitação coletiva, que foi duramente golpeado com a ação de despejo.

O Friedrichshain é um bairro samaritano, que fica no extremo leste da região central de Berlim, que até 2008 era considerada uma área de requalificação, que na prática, significa um bairro pobre. Mas foi a partir de então que empresários do setor imobiliário passaram a investir na região, modernizando e construindo novas edificações. Com a retirada de muitos dos “antigos” moradores, os novos mudaram significativamente a vida social do Friedrichshain. O bairro então se tornou um símbolo da classe média urbana alemã, à exceção da Rigaer Strasse, que abriga punks e pertencentes de movimentos radicais de toda Europa, inclusive na esquina com a Liebigstrasse, no Liebig 34.

Muitos novos residentes da Rigaer Strasse e da Liebigstrasse dizem se sentir ameaçados e, em alguns momentos, aterrorizados pelas residentes e visitantes do Liebig 34. Novas edificações foram construídas no Friedrichshain ao longo dos últimos anos, um bairro residencial, considerado uma área valorizada da capital alemã.

A cultura dos movimentos sociais do Friedrichshain persiste ao longo da Rigaer Strasse, mas ao mesmo tempo se espalhou por uma cidade cheia de história, que dá espaço a criação e pensamentos. O bairro de Kreuzeberg se tornou um dos mais famosos e alternativos, não só pelos grafites espalhados pelas edificações, mas pelos diversos artistas que lá vivem e fizeram da região o novo reduto de boemia, arte e inovação.

Com ideologias que circulam entre o comunismo e o anarquismo, os chamados autonomistas rejeitam a democracia parlamentar e o estado de direito que vigora na constituição da Alemanha. O ideal da esquerda autonomista que ocupava o Liebig 34 é uma sociedade igualitária, mesmo que através da violência, buscando a descentralização do poder, a autogestão e a colaboração em rede dentro dessa comunidade. O movimento autonomista nasceu na Itália em 1960 e chegou à Alemanha anos depois com bastante intensidade, os integrantes se inseriram na ideologia de esquerda radical que desde então perpetua as ideias reformistas, pós-estruturalista e anarquista. Dentro dessa ideologia que o grupo “anarcha-queer-feminista” do Liebig 34 viveu durante os 30 anos do projeto, sem hierarquia, em que tudo que entrava na casa era divido entre todas e, leia-se o tudo, como sendo o essencial para viver. A ação de despejo foi o último golpe ao núcleo duro da esquerda autonomista e aos grupos fortalecidos que vivem nas ocupações ainda à moda da antiga Alemanha oriental. Os Riga 94 ainda estão em processo de despejo, novamente, mas não são um grupo tão fortalecido ideologicamente, por isso não ocupam um lugar de representatividade na cena alternativa de Berlim.

Para onde foram as feministas do Liebig 34?

Após a desocupação do Liebig 34, pouco se ouviu falar das moradoras e quase nada se sabe sobre os seus destinos. Duas delas quebraram o silêncio quase um mês após a ação de despejo e falaram ao jornal alemão Taz.de. Emma, 30, morou na casa por três anos, e Lena, 29, morou apenas seis meses. Após o trauma coletivo que disseram viver com a desocupação, as duas rebatem as falas dos alemães de que as feministas se escondiam no Liebig 34, como um mundo paralelo. Segundo elas “temos isso até certo ponto – para nos proteger da discriminação”, afirma Lena em entrevista ao jornal Taz.de.

Para as duas ex-residentes, o Liebig serviu como um lugar protegido e seguro para as pessoas discriminadas pela sociedade, as minorias perseguidas por sua opção sexual e as mulheres. Mas o despejo do Liebig 34, levou também o núcleo duro do coletivo “anarcha-queer-feminista”, que era a maioria que lá vivia. Para evitar o despejo, barricadas foram construídas ao longo dos anos e, na chegada da polícia, grades e arame farpado foram encontrados nas janelas para dificultar a entrada e retirada das moradoras.

As duas ex-residentes do Liebig 34 não revelam o paradeiro das outras moradoras despejadas e não sabem se será possível encontrar um local para abrigar o projeto habitacional. “Ainda estamos nos encontrando. Não éramos apenas colegas de quarto, mas amigas também”, diz Lena ao jornal Taz.de. Os eventos organizados pelo grupo para levantar fundos permanecem acontecendo na Rigaer Strasse às sextas-feiras e, segundo Emma, “nossos objetivos não se foram apenas porque a casa acabou. A ideia Liebig 34 continua viva. E, talvez ela seja ainda mais perigosa para o patriarcado quando está na rua”. Para completar seu raciocínio, a ex-moradora ainda completa que “queremos viver anarquicamente e solidários uns com os outros”, diz Emma ao Taz.de.

Marina Oliveto

Jornalista formada no Brasil e Mestre em Artes pela Hochschule Darmstadt, na Alemanha. Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona (ULHT) em Portugal. Como Jornalista atuou em diversas emissoras de rádio e televisão no Paraná, dentre as principais: Band TV; CNT; Rede Massa. Atualmente é pesquisadora na área de novas narrativas jornalísticas pelo Nephi-Jor/CNPQ e atua como freelancer na Alemanha.

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