O faxineiro poliglota e o lixo reciclável

Entre o lion, o tiger e esse tal de meio ambiente

Por Cátia Moraes | ODS 11 • Publicada em 4 de junho de 2016 - 08:50 • Atualizada em 4 de junho de 2016 - 13:52

Para tirar o Mutuca do sério e fazê-lo abrir um sorriso é só falar do jogo-do-bicho
Para tirar o Mutuca do sério e fazê-lo abrir um sorriso é só falar do jogo-do-bicho
Para tirar o Mutuca do sério e fazê-lo abrir um sorriso é só falar do jogo-do-bicho

Dizem que chegou ao Rio há mais de 40 anos. Trabalha no mesmo prédio há mais de 30. A idade, uns 60 e muitos. Baixo, musculoso, cabelos claros e pele avermelhada, passaria por estrangeiro não fosse um detalhe: em dia de sol, termina o serviço e sai – de sunga, sem camisa e sem chinelo – rumo à praia.

Três quarteirões, pé no chão, vai completamente à vontade entre moradores de um bairro na Zona Sul. Chega em seu habitat, o calçadão na orla, cumprimenta policiais, guarda-vidas, ambulantes. Nada de conversa. Fica nos cumprimentos.

Mutuca é de poucas palavras. Pouquíssimas. Quando substitui um colega na portaria, executa a função em silêncio quase obsequioso. Abre a porta do elevador, ajuda as senhoras, atende ao interfone sem que alguém ouça uma palavra. O que o tira da mudez: o murmurinho das crianças brincando por perto. Chega a ficar bravo.

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A origem de seu apelido? Custou, mas os colegas descobriram. Ele tinha um irmão baixinho, o ‘Mosquito’. Como ele era ainda mais baixo, 1,55 m, virou o ‘Mutuca’, que ‘é uma mosquinha menor que o mosquito’.

José, nome de batismo, entrou no prédio como Mutuca. Mora sozinho, num quartinho dentro da garagem. Dali vem o dedilhar esmerado de chorinhos tocados ao violão. Coisa fina. Onde ele aprendeu a tocar? Já tentaram descobrir, as versões são controversas. Parece que foi na infância ou juventude, em Pernambuco.

Difícil saber por que Mutuca não é de conversa. Desconfiado, pouco à vontade, vai saber. Quando fala, mal olha para o interlocutor. Como se não precisasse ser escutado. Se alguém dá bom dia, responde com leve – levíssimo – ar de sorriso.

Quer tirar Mutuca do sério? E fazê-lo abrir um sorriso cheio de dentes? É só falar do jogo-do-bicho. Mutuca vira um mosquitão. Revela-se, desvela-se em palavrórios, comentários, informações, conhecimentos, que deixam o interlocutor boquiaberto. E paralisado, porque Mutuca não para de falar. 

Ele joga duas, três vezes por dia, na centena e no milhar, porque ‘dão prêmios maiores’. Há pouco tempo, quando um colega perguntou se ele já gastou mais em apostas do que recebeu em prêmios, ele desconversou. Mutuca só fala do que interessa. Os olhos brilham quando ele ouve: “Que bicho deu hoje”?

– Hoje não deu nada – responde, inconformado. — Sonhei com cat, joguei no lion e deu tiger. Sabia que ia dar um desses – murmura, dentro do elevador.

– O quê? – reage a moradora.

 Tá vendo aqui? Joguei nesse número, que é o lion – diz, exibindo o papel.

– Como…? – insiste a moradora.

– Lion, o leão, mas deu tiger – explica, didaticamente, mostrando o resultado.

– Ah, entendi, deu tigre – balbucia a moradora.

Sim, Mutuca é uma caixinha de surprises. Só fala os nomes dos bichos em inglês. Onde aprendeu? “Por aí”, é o máximo que diz. O inglês de Mutuca virou lenda no prédio, nas redondezas. Um dia, ele falou para um morador que tinha dado ostrich.

– Que bicho é esse? – duvidou o morador.

– Avestruz. Ô bicho difícil de adivinhar! – reclamou, jogando o papel no lixo.

Há dois anos, Mutuca passou a ser responsável pela coleta seletiva de lixo nos doze andares do prédio. Resmungou, como se não entendesse o trabalho ‘a mais’. Outro dia, um colega resolveu perguntar como era ‘meio ambiente’ em inglês, ele respondeu algo inaudível. 

A moradora emendou, perguntando qual era a importância da coleta seletiva, Mutuca deu um riso sem graça, e o colega, o faxineiro conhecido como Zé, foi direto ao ponto.

– É esse negócio de reciclagem, né, Mutuca? – perguntou o Zé.

– E eu sei? Eles mandam fazer, eu faço. Esse assunto é complicado… – respondeu, saindo em disparada.

Cátia Moraes

Jornalista e escritora, autora de quatro livros-reportagem, professora-oficinista sobre a escrita, devotada à arte de escrever e apaixonada, particularmente, pelo gênero que capta o que há de mais espontâneo no ser humano, em seu cotidiano: a crônica. De preferência, a que ousaria chamar de ‘crônica social’ quando a cronista flagra surpreendentes, deliciosas histórias de pessoas ‘invisíveis’ -- a si mesmas, ao mundo – e interage, aprende com elas.

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