O desalento da Rocinha

Moradores da maior favela da Zona Sul revelam desânimo com a intervenção temendo por perda ainda maior de direitos

Por Edu Carvalho | ODS 11 • Publicada em 18 de fevereiro de 2018 - 10:32 • Atualizada em 19 de fevereiro de 2018 - 17:27

Cena da ocupação militar na Rocinha em setembro de 2017. Foto Carl de Souza/AFP
Cena da ocupação militar na Rocinha em setembro de 2017. Foto Carl de Souza/AFP
Cena da ocupação militar na Rocinha em setembro de 2017. Foto Carl de Souza/AFP

Ocorreu ali, no final de setembro do último ano. A Rocinha ainda estava ocupada pelas Forças Armadas quando pela manhã, uma mensagem, fixada na passarela projetada por Oscar Niemeyer, na entrada da comunidade, trazia pintada a frase: “INTERVENÇÃO MILITAR: NÃO É OPÇÃO, É A SOLUÇÃO!”.

Corta. Estamos em fevereiro de 2018, cinco meses depois, e passada a festa onde o sagrado e o profano se encontram, as notícias não são nada animadoras. A cidade faliu. E durante o Carnaval, o número de disparos por armas de fogo teve salto de 106% no Rio, segundo relatório do aplicativo Fogo Cruzado, hoje referência na apuração de dados sobre a violência.

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Enquanto a intervenção for só isso mesmo, militar ou policial, não haverá solução. No dia em que entenderem que as mudanças concretas e duradouras são as sociais, aí sim, haverá diálogo, conversa e evolução

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Antes mesmo de o prefeito Marcelo Crivella passar as chaves ao Rei Momo e correr rumo à Europa, quatro crianças foram atingidas por tiros durante conflitos entre policiais e traficantes. Dentre eles a menina Emily, de 3 anos e o adolescente Jeremias, de 13. A violência não descansou na folia. Além dos tiros tivemos porrada, bomba e arrastões. No meio de tudo isso, o porta-voz da Polícia Militar, o major Ivan Blaz, dirigiu um singelo pedido à população da cidade: “Não utilizem seus celulares para selfies”. Sério? Claro que não adiantou…

Como se não bastasse, veio a chuva. Muita chuva. E dessa vez, não de cápsulas. Citando a amiga jornalista Cecília Oliveira, que escreveu na página pessoal dela no Facebook: “Com as chuvas as balas parecem acalmar’’. Era do céu o presente de grego: justo na cidade do bispo-prefeito aconteceu o dilúvio, mas sua autoridade não se fez presente, como tem sido desde a eleição dele. O bloco passou, a Beija-Flor ganhou e quem resolveu botar a bateria na rua foi o Executivo, que em caráter de urgência, decretou intervenção federal na cidade com a prerrogativa de “restabelecer a ordem”.

Balas nas mãos das crianças, uma rotina infeliz. Foto Custódio Coimbra

O General Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, passou a ser o mais novo responsável pela pasta de Segurança da cidade. Não demorou muito e um amontoado de pessoas nas redes e nas ruas comentavam a ação – inclusive na Rocinha. A profecia expressa na faixa estendida pelos intrépidos vizinhos meses antes, incomodados com a presença de uma favela tão próxima de bairros nobres da Zona Sul, como São Conrado, Gávea e Leblon, se concretizaria? E nós, da comunidade, também poderíamos comemorar?

Dentro dos becos e nos grupos de mensagens da comunidade que em janeiro ficou em segundo lugar no ranking de tiroteios, ainda segundo o aplicativo Fogo Cruzado – 23 ao todo, perdendo somente para a Cidade de Deus, com 49 – , a sensação era outra. “Decretar isso significa dizer que antes os abusos eram comuns e não legitimados e que agora, a partir da decisão, ganharão força”, previu uma moradora.

Outro morador expôs descontentamento e descrença na ação. “Armas e drogas não são produzidas dentro de uma favela onde nem sequer tem saneamento básico”, constatou. Só em 2017 foram apreendidas 499 armas, 130 a mais do que no ano anterior. Cabe lembrar que em junho passado houve a maior apreensão de fuzis na história do Rio: 60 ao todo. E ela aconteceu dentro do Aeroporto Internacional Tom Jobim. Já em relação às drogas, em 2017  foram 12 toneladas.

Na sexta-feira em que a intervenção foi anunciada, houve uma avalanche de posts nas redes sociais. Nelas e nos grupos de WhatsApp circulava uma espécie de “manual” com algumas recomendações sobre o que fazer num período como este. “Não corra na rua! Nunca corra’’; “Não saia sem documentos, principalmente a Carteira de Trabalho’’ e ‘’Procure estar sempre acompanhado na rua’’ são algumas das orientações. A lista termina com: “As instruções acima sempre têm endereço certo, com intervenção ou não’’. Durante uma conversa, um amigo sentenciou: “Para nós pretos e favelados, esse panfleto pode salvar vidas’’. E pode mesmo.

O decreto que por ora quer restabelecer a ordem aciona em nós o medo, pelo risco de ser o próximo na linha do tiro ou do abuso.  Nós, moradores não só da Rocinha, mas de outras comunidades que já conviveram com esse aparato militar, já vimos esse filme e infelizmente sabemos quem levará a pior. Resta a saber de que forma e quando será.

Enquanto esperamos o amanhã, acompanhamos inertes e insones as transformações mais do que visíveis na cidade que há tempos vem sendo vendida, agredida, roubada e maltratada por uma ganância que veste terno, gravata e até guardanapo na cabeça. Lástima sentida até mesmo nas pessoas que, apavoradas, ainda precisam viver nela.

Tentamos, mergulhados na tristeza diária de nossos noticiários e também no que sabemos à boca miúda, achar alguma solução que não seja simplesmente uma Intervenção. Federal. Militar. Enquanto for só isso mesmo, militar ou policial, não haverá solução. No dia em que entenderem que as mudanças concretas e duradouras são as sociais, aí sim, haverá diálogo, conversa e evolução.

Ó cidade maravilhosa, por onde andarás? Teus filhos já não aguentam mais.

Edu Carvalho

Edu Carvalho é jornalista e apresentador, com passagens pela Globo, CNN e Revista Época. Ganhador do Prêmio Vladimir Herzog pelo #Colabora. É colunista no UOL Ecoa e no Maré de Notícias. Morador da Rocinha, cria do mundo

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