O ano era 1981 e o estagiário de jornalismo topou na hora quando os colegas veteranos combinaram: “Vamos comer um bifão no Poleiro do Galeto, na Cadeg, depois do fechamento?” Tinha menos de seis meses de reportagem, nunca tinha ouvido falar do Poleiro do Galeto, e a Cadeg era uma vaga referência de conversas da redação que eu não sabia onde ficava. Mas a adrenalina estava lá no alto, com a oportunidade de pegar umas sobras da cobertura do caso Mariel Mariscott, policial playboy matador transformado em candidato a banqueiro do bicho, e eu podia não perder a chance de jogar conversa fora e tomar cerveja com velhos repórteres de polícia.
Era mais de uma da madrugada – jornal fechava tarde, Mariel valia segunda edição – quando cheguei à Central de Abastecimento da Guanabara, em Benfica. Tinha engarrafamento nas ruas próximas. Era uma multidão de gente entrando e saindo; um desembarque frenético de caminhões de frutas, verduras, hortaliças; tudo muito confuso, meio sujo, uma barulheira danada – um espanto para o jovem jornalista criado em Laranjeiras, na Zona Sul. Mais espantoso só o contra-filé do Poleiro do Galeto: um naco de carne que dava fácil para dois repórteres esfomeados na madrugada. Voltaria ali muitas outras madrugadas: além do filé, o Poleiro, referência na área, servia uma sopa de entulho boa para aquecer a alma depois de um dia difícil na apuração.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Consta que a região começou a ser chamada de Benfica pelos muitos portugueses desta freguesia de Lisboa, no norte da capital, que vieram para o Brasil e estabeleceram-se no bairro, vizinho ao imperial São Cristóvão, moradia da corte no século XIX
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Veja o que já enviamosEra 1981. Eu era jovem: nos dias de mais dureza, pegava carona com um colega até a rodoviária e depois um ônibus para Laranjeiras de madrugada. Benfica não parecia assustadora nem de dia nem de noite. Tinha uma fábrica gigante da CCPL que vi ser implodida pela TV quando estava na Bahia; abrigava mais duas ou três fábricas grandes que faziam o bairro ser industrial de dia e entreposto comercial – por causa da Cadeg – na madrugada. Aliás, a pesquisa diz que Benfica virou oficialmente bairro em 1981, com o decreto do prefeito Julio Coutinho, que promoveu outros tantos sub-bairros da cidade. Consta que a região começou a ser chamada de Benfica pelos muitos portugueses desta freguesia de Lisboa, no norte da capital, que vieram para o Brasil e estabeleceram-se no bairro, vizinho ao imperial São Cristóvão, moradia da corte no século XIX.
Fiquei um bocado de tempo sem pisar na Cadeg, que muita gente chama agora de o Cadeg – de Centro de Abastecimento da Guanabara, que seria o nome correto – ou de Mercado Municipal do Rio de Janeiro, nome oficial. Soube que tinha passado por reformas e uma certa gourmetização, mas que os preços ainda valiam a pena. Desde que voltei da Bahia, só tinha ido lá três vezes, sempre em alguma correria, sempre sem reparar no caminho: o lugar está muito mais arrumado, parece até maior e, talvez porque fui sempre de dia, perdeu um pouco da diversidade de sons e cheiros, que guardo na memória das madrugadas da década de 1980.
Desabastecido de uísque, voltei lá na semana passada já que precisava ir a São Cristóvão atrás da segunda via de minha certidão de nascimento – sou da Zona Sul mas tenho um pé na Zona Norte. O mapa indica que a estação Triagem é razoavelmente perto da Cadeg; caminhar é comigo mesmo. A visão da chegada, entretanto, é desalentadora: entre a estação e Avenida Brasil, para o lado onde fica o mercado, há um mar de imóveis abandonados. Vejo ao longe o Minhocão de Benfica (Conjunto Habitacional Mendes de Moraes), que já caminhava para a favelização em 1981 – é o meu caminho. Quem me conhece sabe que não me assusto fácil na minha cidade. Mas foi estranho atravessar o viaduto Ana Néri, perto do hora de almoço e caminhar pela rua quase sempre vazia. Nem o Adonis, tradicional restaurante, tinha movimento.
O mercado municipal – tombado pelo patrimônio – é um oásis no bairro em decadência. Comerciantes e clientes reclamam da insegurança que sitiou Benfica com o crescimento das favelas nos bairros vizinhos – Mangueira, Barreira do Vasco, Jacaré, Manguinhos – e as da própria vizinhança: Arará e Parque Alegria. Quando a Central (ou Centro) de Abastecimento se mudou para lá, em 1962, vinda da Praça XV, seus administradores, todos comerciantes, compraram o terreno de uma fábrica de cigarros e ergueram o entreposto comercial em ponto de fácil acesso, cercado de fábricas, perto do porto e da Avenida Brasil. Não poderiam imaginar a deterioração do bairro, que sofre apesar da prosperidade de seu, hoje, único atrativo.
Na Cadeg, os comerciantes fazem questão de dar informações, não se importam de dar dicas dos concorrentes. Dá para passar horas ali, como se estivesse num mercado europeu e esquecer das agruras do entorno. São hoje mais de 700 lojas, vende-se praticamente de tudo: tem o Mundo dos Destilados, o Mundo dos Vinhos, o Mundo das Cervejas. É o maior distribuidor de flores do estado, garante a placa. A fama dos restaurantes já atravessou a cidade: os pratos portugueses do Barsa, da Gruta São Sebastião ou do Cantinho das Concertinas, e as carnes da Parrilha do Mercado e do Costelão. Mas, em homenagem ao passado, tenho que encerrar informando que Poleiro do Galeto está no mesmo lugar, e seu contrafilé continua imbatível em tamanho e sabor.