O ano era 2013. Thomas C Wang estava se deslocando de bicicleta para a casa de um tio. Um deslocamento curto, com menos de 1km de distância. No cruzamento da Rua D. Jesuíno Maciel com a Rua João Álvares Soares, no bairro do Campo Belo, na Zona Sul da Capital Paulista, apesar de seguir pela rua preferencial, uma motorista de carro tentou passar o cruzamento, não respeitou a sinalização e acertou Thomas com força pelo seu lado direito. A motorista tentou fugir, mas foi impedida por um funcionário de um salão de beleza na esquina do local. Thomas conseguiu sobreviver para contar a sua história.
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Outros ciclistas não tiveram a mesma chance. Apesar do crescimento anual do uso bicicleta como meio de transporte urbano, principalmente na região metropolitana da capital paulista, a segurança dos ciclistas é um desafio no estado. De acordo com os dados do Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito (Infosiga), no ano de 2023, ocorreram 367 mortes de ciclistas no estado de São Paulo, quase o equivalente a uma morte por dia, número que se mantém constante pelo terceiro ano consecutivo. Em 2022, 357 ciclistas morreram no trânsito paulista; e. em 2021, foram 321 óbitos em sinistros de trânsito envolvendo bicicletas.
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Veja o que já enviamosPelos dados do Infosiga em 2023, a cidade de São Paulo registrou o maior números de mortes – com 35 no período de um ano – seguida por Guarulhos (11), na Região Metropolitana, e Praia Grande (8), no litoral sul do estado. Do total de óbitos, 55,3% ocorreram em vias municipais e 33% foram em rodovias estaduais. E o perfil de ciclistas é majoritariamente masculino, com jovens até 17 anos entre os maiores vitimados. Segundo levantamento da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), entre 2018 e 2020, o Brasil registrou, em média, cerca de quatro mortes de ciclistas por dia.
Alta velocidade, uso de celular ao volante e consumo de bebidas alcoólicas pelos motoristas dos veículos automotores são as principais causas dos sinistros – como os especialistas passaram a chamar as ocorrências para mostrar que não são acidentes – de trânsito. E o número de vítimas vem crescendo entre mais vulneráveis, como os ciclistas – e também entre pedestres e motociclistas.
Além dos sinistros envolvendo imprudência de trânsito, outros casos colocam a vida de ciclistas em risco em São Paulo. O músico Thiago Sant’ Anna Lucas, 36, relata que se acidentou por conta do estreitamento da ciclofaixa na Avenida Paulo VI, na Zona Oeste da capital. “O canteiro central da ciclovia é muito estreito e, além disso, tem o gradeado todo que protege a gente (ciclistas) dos carros” diz Thiago.
No dia da queda, a equipe de limpeza da prefeitura de São Paulo obstruiu a ciclovia com entulho por conta da falta de espaço no canteiro e acabou derrubando Thiago. “Passei por cima do entulho, deu uma desequilibrada de leve e o guidão tocou na grade de proteção. Nessa, a bike fez uma curva, bateu o guidão de borracha e fui arremessado para a esquerda: embolei com a bike, capotei e ela caiu em cima da minha mão esquerda” conta Thiago, que fraturou o primeiro e o segundo carpo do polegar com a queda. O dedo precisou ficar imobilizado por um mês e uma semana, prejudicando seu trabalho como músico.
O economista Ricardo Neres Machado, diretor-executivo da Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo, organização com foco na construção de uma cidade mais sustentável através da mobilidade e do uso da bicicleta) afirma que o esforço da prefeitura para recapear ruas tem resultado na exclusão, diminuição e apagamento das ciclofaixas. Neste último ano de mandato do prefeito Ricardo Nunes, candidato à reeleição em outubro, as obras em vias de São Paulo viraram bandeira eleitoral pré-campanha. Neres Machado defende que a prefeitura deveria aproveitar esse trabalho, energia e disponibilidade de mão de obra no recapeamento das vias, num projeto que poderia gerar inclusão. “Porque essa ciclofaixa não é usada só pelo ciclista; ela é usada também por pessoas com habilidades reduzidas, com cadeira de roda, por pessoas que fazem serviço de coleta de reciclável com os carrinhos com as carroças”, afirma.
Limite de velocidade em debate
O Ciclocidades é uma das organizações que apoia e integra comissão de articulação do PL 2789/2023, projeto que estabelece a redução dos limites de velocidade em vias urbanas com o objetivo de tentar impedir mortes no trânsito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que a velocidade máxima permitida deve ser igual ou inferior a 50 km/h em vias urbanas. O projeto de lei, do deputado paulista Jilmar Tatto, estabalece limites de 60 km/h nas vias de trânsito rápido; 50 km nas vias arteriais; 40 km/h nas vias coletoras e 30 km/h nas vias locais.
Em São Paulo, a redução dos limites de velocidade chegou a ser implantada em 2015, na gestão do prefeito Fernando Haddad (hoje ministro da Fazenda). Haddad adotou uma medida que reduzia os limites para 50 km/h em todas as vias arteriais (avenidas que ligam bairros diferentes, com fluxo intenso e semáforos). “Quando diminuiu a velocidade nas marginais, o número de pessoas mortas no trânsito ou de sinistros diminuiu, mas quando Dória (o prefeito João Dória) entrou e aumentou o limite de velocidade novamente, com aquele programa de ‘Acelera São Paulo’, o número volta a subir e só segue subindo assim” afirma Neres.
O Acelera São Paulo foi um conjunto de medidas implementadas pela Prefeitura de São Paulo, sob a gestão do então prefeito João Doria (2017-2018), com o objetivo anunciado de descongestionar o trânsito da cidade. Estudos realizados por entidades como o Observatório Nacional de Segurança Viária e o Instituto Mobilidade Segura indicam que o Acelera São Paulo pode ter contribuído para o aumento do número de mortes no trânsito, especialmente entre motociclistas e pedestres.
Especialistas argumentam ainda que o aumento do limite de velocidade e a retirada de radares podem ter incentivado comportamentos mais arriscados no trânsito, elevando o risco de acidentes fatais. “Eu acho que não dá para só falar para as pessoas: ‘coloca bike na rua e vai’ – porque tem que ser toda uma coisa pensada para que as pessoas tenham segurança. E, se a gente tem dados e pesquisas que mostram que quanto mais estrutura, mais pessoas se sentem seguras em pedalar, é porque este é o caminho certo” afirma Neres.
O diretor do Ciclocidade ainda afirma que o sinistro de trânsito pode ser um dos motivos para ciclistas deixarem de pedalar: “Eu (como ciclista) já fui atropelado duas vezes, infelizmente. Não tive nenhum dano maior, graças a Deus, mas é um conhecimento traumático”. Ele aponta que a hostilidade no trânsito pode desestimular o ciclista. “As pessoas não deixam de pedalar nem só pelo fato de ser atropelado; é o fato de você tomar uma fechada, você sentir aquela tonelada de aço passando a 10 centímetros do seu lado”, afirma.
Cicloativistas por segurança e justiça
Dez anos depois do seu sinistro de trânsito, Thomas C. Wang é coordenador do Bike Zona Sul, coletivo que promove o uso da bicicleta como meio de transporte e turismo. “Já fui atropelado em mais de uma ocasião. Hoje mesmo vi um ciclista que foi atropelado (e morto) quando estava pedalando para o trabalho” afirmou Wang, em entrevista ao #Colabora no começo de abril. Com o constante número de sinistros e mortes de ciclistas, o grupo comunitário, além de manter um diálogo constante com os meios de comunicação e órgãos governamentais por melhores condições para pedalar, faz parte de uma ampla comunidade de ciclistas mobilizados por um trânsito mais seguro na cidade de São Paulo. Os grupos de cicloativistas atuam organizadamente através das redes sociais e cobrando melhorias na mobilidade ativa à CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e à Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito.
Outro movimento cicloativista na cidade de São Paulo é o Massa Critica SP, que promove pedaladas com ciclistas nus na noite da última sexta-feira do mês, com o intuito de chamar a atenção dos motoristas e da sociedade para a fragilidade dos ciclistas no dia a dia do trânsito e conscientizar sobre o alto índice de violência contra ciclistas em todo o Brasil, combatendo a ‘cultura dos carros’.
O Massa Critica foi um dos organizadores dos atos em memória da artista visual Julieta Hernandes, em janeiro deste ano. A venezuelana Julieta, conhecida como ‘palhaça Jujuba’, também era ciclista e viajava com sua bicicleta pelo Brasil. Pretendia retornar à Venezuela para rever sua mãe, mas durante o trajeto, no Amazonas, desapareceu por 14 dias e foi encontrada morta em Presidente Figueiredo, no interior do Estado. Sua morte causou comoção entre os ciclistas do mundo todo.
Apesar das mortes, São Paulo é considerada altamente ciclável
Estudo realizado pelo Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP revelou que 37% dos deslocamentos feitos em carro e moto na Região Metropolitana de São Paulo poderiam facilmente ser feitos de bicicleta. O estudo, que deu origem ao Índice de Potencial Ciclável (IPC), oferece uma ferramenta para auxiliar gestores públicos na tomada de decisões sobre a implantação de ciclovias.
Para chegar a este resultado, os pesquisadores utilizaram um algoritmo de código aberto que avalia a dificuldade de cada trajeto para ciclistas. O algoritmo levou em consideração fatores como distância, inclinação do terreno e topografia da região. Após a análise, o estudo concluiu que 20,7 milhões das 49 milhões de viagens diárias na região metropolitana são altamente ou muito cicláveis. Isso significa que estas viagens podem ser facilmente feitas de bicicleta, com benefícios para o meio ambiente, saúde pública e economia.
O professor Fabio Kon, coordenador do grupo e do BikeScience, projeto em colaboração entre a USP e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), explicou, em entrevista para ao jornal Folha de São Paulo, que o investimento em estrutura poderia facilmente ampliar a quantidade de viagens de bicicleta na cidade paulista. “Hoje temos apenas 400 mil viagens diárias de bicicleta na região. Daria facilmente para multiplicar esse número por 10 se houvesse estrutura cicloviária adequada na cidade”, disse Kon, PhD em Ciência da Computação.
A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito (SMT) e da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), informou que 731 quilômetros de ciclovia foram alcançados até o fim de 2023 e o plano de Metas 2021-2024 ainda prevê a criação de 300 km de novas ciclovias até o fim de 2024, dos quais 31 km já foram finalizados. Para Ricardo Neres Machado, diretor-geral da Ciclocidade, a capital está longe de alcançar essa meta. “A gente tá com os mesmos 700 e poucos quilômetros desde o começo da sua gestão (do prefeito Ricardo Nunes), se foram implementados esses 30 quilômetros, foi muito”, lamenta.