Vem da Bahia, lugar primeiro do Brasil e que inaugura sempre o que está por vir, uma das ações culturais mais relevantes no país: a megaexposição “Raízes: Começo, Meio e Começo”, que desponta na cena dos circuitos como uma das mais visitadas em 2024 até aqui – ao todo, mais de 150 mil pessoas em quatro meses de exibição.
Leu essa? Terreiros afetados por chuvas no Sul buscam se reerguer em meio ao racismo religioso
Não é por menos: o trabalho e a dedicação reúne mais de 200 obras de arte do clássico ao contemporâneo, assinadas por 87 artistas – sendo 84 negros. De uma vez só, relacionadas estão as tecnologias ancestrais, a partir do retorno às origens africanas. O local que tem sediado essa ocupação é o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador.
Receba as colunas de Edu Carvalho no seu e-mail
Veja o que já enviamosSe o que está no museu referenciando precisa conectar com o presente vivido, o êxito está posto. Em entrevista à coluna, Jamile Coelho e Jil Soares, que compartilham a curadoria da exposição, refletem sobre o novo momento do Muncab e o que representa a exposição, que tem como um dos principais objetivos ser o maior da diáspora africana na América Latina.
O que significa organizar uma mostra em que estão reunidos 84 artistas negros?
Jamile Coelho: “É preciso que cada vez mais sejamos sujeitos de nossa fala, nossa escrita, de nossa história”. Essas palavras foram ditas por Makota Valdina, educadora, ativista dos direitos humanos e uma das lideranças mais importantes do Candomblé no Brasil. Mas como deixar de ser objeto para ser sujeito em um país que promove o apagamento diário — institucionalizado, sistemático, silencioso — das populações negras. Raízes nasce da necessidade de reafirmação cotidiana da contribuição das matrizes africanas na construção da identidade brasileira.
Organizar uma exposição com mais 87 artistas, sendo que são 84 negros, significa afirmar e celebrar a rica diversidade de expressões artísticas que formam as culturas africanas e afrodescendentes. É uma oportunidade de valorizar as narrativas que foram historicamente marginalizadas ao mesmo tempo de visibilizar a diversidade de talentos e perspectivas, desconstruindo estereótipos e contribuindo para a formação de um olhar mais crítico e inclusivo sobre a história e a cultura do Brasil. Esta exposição serve como um espaço de encontro entre o passado, o presente e o futuro, onde a ancestralidade se manifesta e ressignifica as experiências contemporâneas.
Jil Soares: Acredito que uma mostra com esse alinhamento é o resultado do encontro de culturas que se deu por meio da diáspora. É a entrega destes cruzamentos de pertenças estéticas, e acima de tudo do saber ancestral disseminado e ritualizado a partir dos fenômenos de novas liturgias.
Como se deu o trabalho de curadoria em reunir ancestralidade, tempo, espaço e movimento através das obras?
Jamile Coelho: A curadoria da exposição “Raízes: Começo, Meio e Começo” foi guiada pelo conceito de circularidade, onde o tempo é entendido como um ciclo em algumas cosmovisões africanas. Na cultura iorubá, a palavra, ou seja, o ofó, tem poder. O conceito curatorial foi construído a partir de um painel semântico que envolveu pesquisa atravessando diversas linguagens artísticas, permeada pela sonoridade dos discos “O Canto dos Escravos”, de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo Filme e “Os Tincoãs”de (1973) e do livro “Meu Caminhar, Meu Viver” de Makota Valdina, além dos símbolos sonas e os adinkras presentes na expografia, a ideia foi conectar passado, o presente e futuro, destacando a ancestralidade como uma força vital que permeia todas as esferas da existência. Ao organizar a exposição em eixos temáticos interconectados, foi criada uma narrativa coesa e imersiva de modo a apresentar a produção artística negra em diversos formatos, tempos, espaço e movimento, convidando o público a refletir sobre a importância das raízes africanas na construção de identidades, em um percurso inspirado na cosmovisão africana simbolizada pelo Baobá a árvore da vida.
Jil Soares: Foi pensado inicialmente um cuidado com aqueles que vieram antes, ou seja, intelectuais da visualidade já renomados, pontuando em seu movimento, linhas de continuidade de maneira horizontal na mesma estepe museal com artistas do agora. Esse apuro pode ser compreendido e interpretado como uma reverência e respeito àqueles que chegaram primeiro, e se encontram como reflexo, nos trabalhos dos que agora estão.
Ter a possibilidade de organizar uma mega exposição como esta inaugura um novo modo de relação com esse lugar de construção de um museu?
Jamile Coelho: “Raízes” é a primeira exposição concebida pela equipe curatorial do Muncab nesta nova gestão. Para nós, enquanto curadores, é muito simbólico saber que o primeiro curador da casa foi Emanuel Araújo. Nesse sentido, o Muncab tem se consolidado não apenas como um local de preservação, mas também como um espaço dinâmico de criação e inovação, marcando um ponto de virada no seu posicionamento no cenário cultural brasileiro e internacional. Em pouco tempo, já temos acordos de cooperação e parceria com mais de 24 (vinte e quatro) países africanos. Esse trabalho reafirma o papel do museu como referência para a cultura afro-brasileira e destaca sua capacidade de produzir eventos que dialogam com a sociedade contemporânea, fortalecendo os laços com a comunidade e atraindo um público mais diverso e engajado.
Jil Soares: Certamente, organizar uma mega exposição como essa pode inaugurar uma nova maneira de conceber a relação com o espaço museológico. Ao descrever e ratificar (grifo meu), a exposição como um “quilombo artístico” contemporâneo, você enfatiza um espaço de resistência e criatividade que transcende as estruturas tradicionais de um museu. Esse “quilombo” não é apenas um refúgio, mas um locus de inovação estética e cultural, radicado na ”Razão Inadequada” que desafia e redefine as normas estabelecidas no entorno e dentro do contexto de plasticidade. Se para alguns essa abordagem pode ser vista como um “novo lugar de construção de museu” é importante reconhecer que o ato de criar e apresentar arte já é, por si só, uma forma de construção de conhecimento e valorização cultural, independentemente do espaço físico — seja ele um museu, uma galeria ou as ruas. O museu, neste contexto, é entendido como um espaço não só de exposição, mas também de disseminação de saberes, preservação de tradições e revisão das epistemologias ancestrais. Portanto, a exposição não se limita a redefinir o papel do museu, mas também a expandir a noção de como e onde a arte pode ser experimentada e compreendida. Ela propõe novos paradigmas de plasticidade, força e diferenciação estética, enfatizando que o processo criativo e o espaço de exposição são interdependentes e mutuamente formadores.
O resultado financeiro gerado no circuito valida a ideia de que não é algo só de ‘demanda’?
Jamile Coelho: Como bem afirmou Gilberto Gil, “É preciso acabar com essa história de achar que a cultura é uma coisa extraordinária. Cultura é ordinária”. A cultura é fundamental, e precisamos de investimentos mais efetivos no setor cultural em nosso país. O Louvre é o museu mais visitado do mundo, e crescemos com a imagem de Paris e da França como berços da cultura e da gastronomia. A Coreia do Sul reergueu-se pós-guerra como uma potência cultural desta década, a partir do K-pop e dos doramas.
Salvador tem se consolidado como a capital afro das Américas. No último verão, a cidade foi o principal destino turístico no Brasil, com os museus sendo um dos principais atrativos para recepcionar os visitantes e conectá-los com a história local. Isso evidencia que o Muncab não apenas atende a uma demanda existente, mas também cria novas perspectivas e movimenta o consumo da estética negra nas artes. É a confirmação de que a criação afrodescendente é um elemento fundamental da cultura contemporânea brasileira, com um apelo garantido e demonstra o grande interesse do público por temas relacionados às origens de sua formação identitária.
Jil Soares: A combinação dessas ferramentas: análises de dados financeiros; pesquisa de mercado visual; avaliação crítica da teoria crítica do Estado da Arte; impacto cultural e educacional; feedback de público espontâneo e público especializado; artistas e curadores e o impacto, tanto institucional quanto na carreira dos artistas, permitirá uma compreensão mais abrangente de como o resultado financeiro se relaciona com a validade cultural e artística do projeto. Se a exposição mostra resultados financeiros sólidos acompanhados de impacto crítico e cultural significativo, isso sugere que o sucesso vai além de simplesmente atender à demanda do mercado e possíveis interpretações do circuito capital, seja este no campo simbólico ou nas suas vias de trânsito.
Qual é a sensação do público e o retorno que vocês recebem, sobretudo daquilo que não é palpável?
Jamile Coelho: O retorno do público tem sido positivo, especialmente em termos de conexão emocional e espiritual. Muitos visitantes relatam uma sensação de pertencimento e de reencontro com seus antepassados “parentes distantes” a partir da imersão nos ambientes temáticos, algo que vai além do tangível. O impacto da exposição é sentido na forma como as pessoas refletem sobre sua própria identidade e história, o que reforça o papel do Muncab como um espaço de transformação e empoderamento.
Jil Soares: Um dos retornos mais significativos que nos chega é que uma exposição com esta proposta valida os processos de cura, testemunho e narrativas pessoais dos sujeitos-visitantes. É como vivenciar a experiência da trajetória do herói ao encontrar o elo perdido. Pois a exposição Raízes, Começo, Meio e Começo é a celebração deste entroncamento de culturas, por meio da diáspora, a saber, o encontro das culturas africanas com a indígena, o que culminou nos processos de construção da identidade que denominamos hoje de brasileira.
Como avaliam a ação do Muncab, recém-inaugurado após esse período de obras, e sua reafirmação perante outros espaços culturais do país? Acreditam que pode marcar um ponto de mudança?
Jamile Coelho: A reinauguração do Muncab em novembro, após a conclusão da primeira etapa de sua requalificação, marca um momento crucial na história do museu e no panorama cultural da cidade de Salvador. Essa etapa inicial foi viabilizada por uma colaboração estratégica entre o Muncab e a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Prefeitura de Salvador, demonstrando compromisso com a revitalização e expansão do espaço.
Ainda falta a segunda etapa de requalificação e a construção de um anexo, que estão previstas para começar no primeiro semestre do próximo ano. A ideia é criar um complexo cultural, que promete ser o maior da diáspora africana na América Latina, posicionando o Muncab como um centro de referência para a cultura afrodescendente.