Pé na estrada e poesia na voz

Aroldo Pereira, da organização: “compromisso de exercitar a liberdade e a democracia com a arte e a educação”. Foto André Giusti

A experiência transformadora de um grupo de alunos, filhos de lavradores, em participar de um festival de poesia, em Minas

Por André Giusti | ODS 10 • Publicada em 13 de dezembro de 2022 - 09:39 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 19:56

Aroldo Pereira, da organização: “compromisso de exercitar a liberdade e a democracia com a arte e a educação”. Foto André Giusti

Às três e meia da manhã de uma terça-feira chuvosa, muita gente já estava de pé no povoado de Nova Aparecida, zona rural de Icaraí de Minas, que fica na beira do rio São Francisco e a 500 quilômetros de Belo Horizonte. Por lá, acordar tão cedo não é novidade, mas ao contrário do que pode pensar quem mora numa cidade grande, não estamos falando de trabalhadores rurais, e sim de seus filhos adolescentes, alunos do ensino médio. O motivo de terem acordado tão cedo não foi ajudar os pais na lavoura, mas algo totalmente inédito na vida escolar dessas moças e rapazes que estudam na Escola Estadual Manoel Tibério. Eles viajaram 180 quilômetros em um ônibus fretado, e não foi para um passeio comum de colégio, como um parque aquático ou lugares do gênero. Vinte e oito alunos, acompanhados de professoras e funcionários da escola, colocaram o pé na estrada para escutar e declamar poesia.

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O grupo participou do Psiu Poético, um festival de arte contemporânea que há 36 anos movimenta Montes Claros, norte de Minas. O Psiu Poético engloba apresentações de teatro, música, dança e performances, mas o destaque, como o próprio nome diz, é a poesia. Ao longo de mais de três décadas, o festival, um dos principais da cena poética nacional, já recebeu nomes de peso no gênero, como Wally Salomão, Arnaldo Antunes, Ferreira Gullar, Thiago de Mello e Adélia Prado. É de se imaginar, então, o estado de excitação dos alunos, começando com a própria viagem. “Tudo aqui é novidade. Inclusive a cidade, para alguns, é novidade. Tem gente que nunca veio aqui”, conta a vice-diretora, Adiril Dete, sobre Montes Claros, cravada no sertão mineiro, eternizado por Guimarães Rosa.  Adiril era uma das mais entusiasmadas com a oportunidade que a escola ofereceu aos alunos. “Tudo isso vai agregar na vida desses alunos conhecimento e experiências que vão, certamente, alterar positivamente a vida deles. Quem veio conosco vai voltar outro aluno, com outro pensamento, outra formação”, ela apostava depois que o grupo recitou poemas nas ruas do centro da cidade, juntamente com a organização do festival e autores que participaram do evento.

A experiência inédita de declamar poesia no meio da rua. Foto André Giusti
A experiência inédita de declamar poesia no meio da rua. Foto André Giusti

A aventura de ir a Montes Claros começou a partir da inquietação de outra professora, Iracema Alves de Almeida, que leciona português. Ela queria oferecer aos alunos algo diferente da rotina casa-escola-escola-casa na sossegada zona rural de Icaraí de Minas, que segundo estimativas possuía em 2021 pouco mais de 12 mil habitantes (a zona rural não tem mais de 500 moradores, segundo os funcionários da escola). Iracema conta que queria “A oportunidade de despertar neles algo além do que eles pensam que têm capacidade”.  Ela foi a Montes Claros, cidade polo da região, com população superior a 400 mil pessoas (também estimativa em 2021), para saber o que se faz no município em termos de cultura e educação que poderia ser levado aos seus alunos. Foi quando descobriu o Psiu Poético e ficou encantada com a proposta democrática do festival, em que todos podem ler poemas e participar de graça. Quando ela voltou com a ideia de levar os alunos para o festival, acendeu neles o gosto pela leitura e pelo chamado “fazer poético”. “Eles sentiram a necessidade de produzir (poesia) cada vez mais. Eu tenho alunos que escreveram cinco poemas sem que ninguém pedisse e agora querem participar do festival interno da escola que eu pretendo promover”, conta Iracema. Vale lembrar que quando Iracema teve a ideia, faltava cerca de um mês para o início do festival e todos se apressaram nos preparativos, que incluíram, além de escrever poemas para serem lidos em Montes Claros, ensaios de declamação com microfone, já que, segundo as professoras, muitos meninos e meninas jamais haviam sequer segurado o aparelho.

O resultado de tanto empenho foi mesmo “algo além da imaginação”, como definiu Letícia Moura Queiróz, aluna do primeiro ano do ensino médio. “Está sendo mágico, a gente que é do meio rural não está acostumada a vir a esses ambientes assim para expor o que estamos pensando e passar isso para as pessoas. Então, está sendo uma experiência única, são gestos, emoções, é olhar, é sorriso, é tudo além do que a gente está acostumada a viver”, exultava Letícia depois de ter lido seus poemas no meio da rua para os colegas, as professoras, os autores convidados e tanta gente que parou para escutar.

Quem presenciou a empolgação da garotada nas poucas horas que passaram em Montes Claros (com direito a piquenique no parque municipal, na hora do almoço) se convenceu de que educação passa também por duas palavras: incentivo e motivação. “A gente tem que estar sempre motivando. Se deixar partir só deles (os alunos), não acontece. O professor é um dos agentes. Parte primeiro da família e depois de nós, professores”, assegura Ivanete Nunes Pereira Mendes, diretora da escola Manoel Tenório.

Geovana Cardoso, aluna do terceiro ano, já escrevia poesia, mas a vocação ganhou impulso com a ida ao Psiu Poético. No poema Juventude, um dos que levou para apresentar no festival, ela retrata o conflito de jovens que chegam à idade de terem que decidir o que querem ser da vida e que profissão seguir, o que é inerente a essa fase, seja no campo ou nas cidades. “O caos que estamos vivendo no terceiro ano, de decidir o que vamos fazer depois, esse sentimento turbulento dentro da gente, e poder se expressar em um momento como esse é libertador”, resume a aluna que está fazendo vestibular para direito.

Aroldo Pereira, o principal organizador do festival, conta que o Psiu Poético sempre levou os estudantes para o evento, sejam eles da educação básica ou das universidades, da zona rural, da periferia ou dos centros urbanos. “O Psiu poético sempre teve esse compromisso, de exercitar a liberdade e a democracia com a arte e a educação”, resume. Após dois anos ocorrendo de maneira virtual por causa da pandemia, este ano o encontro voltou a ser presencial, em um centro cultural da Prefeitura, no centro histórico de Montes Claros, e isso foi o máximo de ajuda que a organização conseguiu do poder público. Mesmo assim Aroldo celebrou a volta à normalidade, exaltando as presenças de alunos e professoras. “Bacana que esses professores mais comprometidos e esses alunos que querem um futuro mais digno estejam buscando, através da educação, através da arte, da amizade, coisas melhores”.

Entre alguns dos alunos que foram ao festival, havia certa tristeza pelos colegas que não puderam ou não quiseram ir. “Tem muitos talentos lá, que escrevem muito bem”, garante Alessandra Alves, do primeiro ano.  Ela acha que a experiência por ser nova, totalmente diferente do que ela e os colegas haviam vivenciado até então, pode ter assustado os colegas que não vieram. “(Assusta) Declamar no meio da rua, ou mesmo declamar um poema, porque muitas pessoas não mostram, guardam só para si”, explica. João Pedro Rodrigues Veloso, do segundo ano, concorda. “Muitos queriam ter vindo, mas não vieram por causa de timidez, vergonha. Eu vejo muito potencial em meus colegas”. “São meninos inteligentes. Acho que é porque comem peixe, né? O peixe do São Francisco ajuda muito”, corrobora, brincando, a vice-diretora Adiril Dete. A expectativa da vice-diretora de que a meninada voltaria melhor depois de participar do festival era confirmada pouco antes do grupo se despedir de Montes Claros. “Eu volto mais leve”, dizia, sorrindo, a aluna Letícia, “e quero passar isso para todo mundo, a experiência de se expor com poesia e que passem isso para as outras pessoas”.  João Pedro, que classificou a experiência como memorável, fez questão de realçar a iniciativa de Iracema de levá-los ao festival, e com uma frase o rapaz sacramentou a importância que uma professora pode ter na vida de uma pessoa. “Ela é fundamental, se não fosse por ela, nós não estaríamos aqui. Quando eu lembrar dela, e vou lembrar dele (do festival)”. Na despedida do grupo, vendo a alegria dos jovens, perguntamos à Adiril Dete se ela se sentia vitoriosa em sua profissão. Sempre sorrindo, respondeu sem titubear: “Sim, a gente esquece aquelas ‘outras coisas’, valorização profissional, bandeira que a gente sempre levanta. Mas esses fatos assim nos entusiasmam, nos levam a continuar caminhando”.

Alunos da zona rural, em Minas, e um dia que a poesia tornou eterno. Foto André Giusti
André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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