Pandemia na pesca: “O pescador, que vive no mar, não tem água para lavar as mãos em casa”

Proprietário de um barco pequeno em Natal, José Tomaz Dantas, de 66 anos, pretendia ficar em quarentena após o período da Semana Santa. Mas diante da crise no setor, terá que trabalhar sozinho (Foto: Mariana Ceci)

No Nordeste, crise da covid-19 afeta renda dos trabalhadores que vivem da pesca artesanal e ainda lutam para se recuperar do maior desastre ambiental registrado no litoral brasileiro. Não sobra dinheiro nem para as contas de abastecimento

Por Mariana Ceci | ODS 10 • Publicada em 21 de abril de 2020 - 09:19 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 12:15

Proprietário de um barco pequeno em Natal, José Tomaz Dantas, de 66 anos, pretendia ficar em quarentena após o período da Semana Santa. Mas diante da crise no setor, terá que trabalhar sozinho (Foto: Mariana Ceci)

Na praia de Itapissuma, em Pernambuco, lar da mais antiga colônia de pescadores do estado, onde 70% da população vive da pesca, os moradores não acreditavam que veriam, tão cedo, uma crise maior do que a provocada pela chegada das manchas de óleo ao litoral, no segundo semestre de 2019. “Já estava muito difícil antes, porque as pessoas passaram a ter medo de comprar os mariscos, os peixes. De repente, chegou o coronavírus. Agora, não tem mais quem compre nada. Os pescadores estão indo para o mar para pescar para si e conseguir comer”, conta Joana Rodrigues, 64 anos, que desde os oito trabalha como pescadora. A realidade se repete nas demais praias do Nordeste, região que concentra o maior número de pescadores artesanais do país, e onde milhares ainda lutam para se recuperar do maior desastre ambiental já registrado no litoral brasileiro, que levou mais de 6 mil toneladas de óleo às praias da região, afetando ecossistemas inteiros e populações que dependem da pesca para viver.

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“A maior parte dos pescadores aqui foi atingida pelo óleo, e nem todos receberam o auxílio (auxílio emergencial criado pelo governo). Tem locais onde existem 200 pescadores com registro ativo, mas só 8 pessoas receberam o dinheiro. Muitos também receberam apenas duas das quatro parcelas prometidas. Não tem ninguém que tenha essa tal de ‘reserva de emergência’”, relata Joana. Deixados de lado em grande parte das políticas voltadas para o setor agropecuário, os pescadores artesanais sentem-se abandonados em meio à pandemia. “É até uma ironia. O pescador, que vive no mar, agora não tem água para lavar as mãos em sua própria casa, porque não consegue pagar as contas”, completa. A situação é recorrente, principalmente nas famílias de Pernambuco. A esperança é a que realidade mude com o depósito do auxílio emergencial de R$ 600 anunciado pelo governo para trabalhadores informais, iniciado na quinta-feira, 9.

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De repente, chegou o coronavírus. Agora, não tem mais quem compre nada. Os pescadores estão indo pra o mar para pescar para si e conseguir comer

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O professor Antonio-Alberto Cortez, membro do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), que estuda a Socioeconomia da Pesca e da Aquicultura, explica que, por ser uma atividade pulverizada e, na maioria das vezes, informal, os quantitativos econômicos muitas vezes não são capazes de demonstrar a verdadeira dimensão da pesca artesanal. “A região Nordeste concentra o expressivo número de 319.700 pescadores e marisqueiros. O vazamento de óleo verificado em parte significativa do litoral nordestino ainda repercute e, infelizmente, soma-se a essa crise gerada pela pandemia do coronavírus”, diz o professor.

Na região, 65.983 trabalhadores receberam o auxílio do Governo Federal destinado a reduzir os impactos do desastre ambiental na renda dos pescadores – número distante da realidade de quase 320 mil profissionais existentes na área. “Em várias localidades, as perdas na produção chegaram a 100%”, afirma Cortez. Além de muitos terem ficado de fora do auxílio específico criado para o desastre ambiental, vários pescadores ainda aguardam para receber as parcelas deste ano do seguro-defeso, benefício criado em 2003 para garantir o sustento dessa parcela da população durante o período no qual é proibido pescar para garantir a preservação das espécies marinhas, no valor de um salário mínimo (R$ 1.045).

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O Projeto #Colabora fez um levantamento junto às unidades estaduais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) no Nordeste. Dos nove estados nordestinos, apenas Alagoas e Piauí não responderam à solicitação. Ao todo, 58.463 pescadores artesanais aguardam a conclusão da análise de seus pedidos, ou seja, ainda não receberam os valores referentes aos meses de 2020 nos quais tiveram que interromper suas atividades para preservar os peixes.

Nas praias do Nordeste, o clima é de incerteza diante da pandemia. A região concentra o maior número de pescadores artesanais do país (Foto: Mariana Ceci)

No Rio Grande do Norte, onde cerca de 1,5 mil pedidos continuam em análise, os pescadores de lagosta foram alguns dos mais afetados pelo não pagamento do benefício. “O pescador ganha quando vai para o mar. Nesses meses, eles têm que ficar parados para a espécie poder ter um descanso, então ficam sem ganhar. Esse dinheiro é o que dá o sustento para essas famílias durante esse período”, explica Rosângela Silva, da Colônia de Pescadores de Natal. “Como estão há meses sem receber, isso significa que eles já estavam passando dificuldade, que agora não tem hora nem dia para acabar”, diz.

Em alguns estados, como é o caso do RN, o INSS pretende criar uma força-tarefa específica para tentar dar celeridade às solicitações pendentes. Não há, no entanto, um prazo para que os pescadores comecem a receber o benefício. Enquanto isso, no Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e Ceará, as colônias de pescadores estimam que a queda pela procura dos pescados foi de até 80%. A Semana Santa, período no qual tradicionalmente a saída dos peixes é grande, conseguiu impulsionar um pouco as vendas, mas apenas o suficiente para que muitos conseguissem pagar parte das contas atrasadas e os custos das pescarias.

“A gente ainda não tinha se recuperado do óleo”

Proprietário de um barco pequeno que sai quase diariamente do Canto do Mangue, em Natal, José Tomaz Dantas, de 66 anos, conta que pertence aos grupos de risco para desenvolver um quadro grave da doença provocada pelo coronavírus. Sua pretensão, inicialmente, era ficar em quarentena após o período da Semana Santa, quando é comum que haja escassez de peixes após as grandes pescarias que são feitas na semana anterior à celebração cristã.

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A gente ainda não tinha se recuperado do óleo. As pessoas acham que só porque parou de chegar e os jornais pararam de falar, os nossos problemas sumiram, mas foram meses de vendas baixas e com dívidas se acumulando, estava longe de voltar à normalidade

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“A gente ainda não tinha se recuperado do óleo. As pessoas acham que só porque parou de chegar e os jornais pararam de falar, os nossos problemas sumiram, mas foram meses de vendas baixas e com dívidas se acumulando, estava longe de voltar à normalidade”, relata João Tomaz. “Meu pensamento inicial era me colocar em quarentena, mas eu tinha que pagar os custos das viagens, porque o preço do combustível não diminuiu, mas o preço do peixe, sim. Preciso pagar os outros pescadores e, para isso, vou ter que trabalhar muito sozinho”, completa o pescador.

Para sobreviver, muitos recorrem às duplas ou triplas jornadas, pescando em um turno, vendendo pelas ruas da cidade em outro, e aceitando ‘bicos’ para remendar redes de pesca ou consertar embarcações a fim de garantir alguma renda no fim do mês. “O que ainda está me mantendo é esse bico de remendo de redes. Só recebi dois dos quatro pagamentos que prometeram daquela história do óleo. Nas primeiras semanas do decreto de isolamento, saíamos pra vender pelas ruas da cidade. Hoje, já não podemos fazer isso pelo risco de pegar a doença e, mesmo que fizéssemos, não teria para quem vender”, diz Jorge Gossom, 58 anos, que também pesca no Canto do Mangue.

Jorge Gosson, de 58 anos, está conseguindo sobreviver graças ao bico que faz remendando redes de pesca. (Foto: Mariana Ceci)

De acordo com a Secretaria de Aquicultura e Pesca, vinculada ao Ministério da Agricultura, o órgão mantém diálogo “com as entidades do setor, e articula ações de cunho social e econômico para pescadores, produtores, empresários e comerciantes junto aos demais órgãos do Governo Federal e ao Congresso Nacional”. Neste momento, a Secretaria afirma que trabalha no ordenamento e desenvolvimento do segmento, avaliando as demandas que foram entregues pelos representantes na 1ª Reunião Extraordinária da Câmara Setorial da Produção e Indústria de Pescados, que aconteceu no dia 7 de abril.

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É até uma ironia. O pescador, que vive no mar, agora não tem água para lavar as mãos em sua própria casa, porque não consegue pagar as contas

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Dentre as medidas analisadas pela Secretaria, estão a avaliação de demandas sobre alteração do período de defeso e o pedido de pagamento de seguro-defeso específico para o período da pandemia. A medida, no entanto, esbarra nas dificuldades práticas que as agências do INSS apresentam para efetuar o pagamento dos pedidos que já foram realizados até então, do seguro-defeso regular.

Segundo o professor Antonio-Alberto Cortez, a crise escancara gargalos históricos do setor. “Mesmo representativa pela expressão numérica e pela importância socioeconômica, o segmento pesqueiro artesanal sofre em razão da ausência de políticas públicas efetivas, consistentes e permanentes”, afirma. O principal temor é que, assim como aconteceu durante o desastre ambiental do derramamento de óleo, a maior parte dos pescadores fique desassistida em meio à pandemia.

“A pesca artesanal carece do norteamento representado por políticas macrossetoriais voltadas aos diversos eixos que compõem esse segmento. Fora disso, este setor de produção sempre se mostrou fragilizado frente aos demais componentes do sistema econômico nacional e, consequentemente, reduzido e sem forças para influenciar nas decisões governamentais”, completa o professor.

Mariana Ceci

Mariana Ceci é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem interesse principalmente nas coberturas voltadas para o Nordeste brasileiro, Direitos Humanos, Gênero e Meio Ambiente. Desde 2016, atua como repórter no jornal Tribuna do Norte, em Natal, e colaborou com a agência Saiba Mais, de jornalismo independente.

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