O drama dos refugiados etíopes que fogem da guerra

Em meio aos riscos da pandemia, cerca de 50 mil pessoas deixam suas casas e empregos para buscar paz e abrigo no país vizinho

Por Vinicius Assis | ODS 10 • Publicada em 21 de dezembro de 2020 - 10:05 • Atualizada em 29 de dezembro de 2020 - 09:37

Refugiados etíopes são transferidos de ônibus após cruzarem a fronteira em Hamdayit, leste do Sudão. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP. Dezembro de 2020

(Hamdayet, Sudão) – Na cidade sudanesa de Hamdayet, em uma área empoeirada a apenas 3km da fronteira do Sudão com a Etiópia, a precária iluminação fazia o lindo céu estrelado saltar aos olhos. A gigantesca lua amarelada parecia bem mais próxima dessa área rural do que de qualquer outra parte do planeta. Porém, nada chamava mais atenção do que as histórias contadas por cada um dos mais de 50 mil refugiados etíopes que fugiram para o Sudão nas últimas semanas.  A pandemia se juntou com o medo da guerra, com a fome e mudou radicalmente a vida de cada um deles nas últimas semanas.

A quarentena forçada pelo novo coronavírus já havia adiado a formatura do Henok, um etíope de 22 anos que cursava o último período de Engenharia de Mineração. Agora ele vive como refugiado no país vizinho: “Vim em busca de paz. Só espero reencontrar minha família em breve”, disse o jovem que fala três idiomas e tentava faturar algum dinheiro ajudando jornalistas a traduzir as entrevistas com os refugiados que não conseguiam se comunicar em inglês.

O conflito entre o exército da Etiópia e as forças de segurança da região semi-autônoma do Tigré, no norte etíope, já fez uma multidão fugir para o Sudão desde o início de novembro. Ninguém sabe calcular ainda, precisamente, a dimensão das consequências deste confronto, uma vez que o governo da Etiópia cortou a comunicação no Tigré (internet e telefone) e isolou a região do resto do país, ao bloquear estradas pelas quais chegavam alimentos e suprimentos médicos para mais de três milhões de pessoas. A região do Tigré também sofreu ataques aéreos das forças armadas do próprio país e estima-se que milhares de pessoas já tenham morrido. Milícias também passaram a espalhar medo e insegurança. Soldados etíopes começaram a monitorar a fronteira, na tentativa de inibir a saída de pessoas em fuga. Com isso, o número de novos refugiados chegando diariamente no Sudão diminuiu de milhares no início de novembro para centenas desde o início de dezembro, mas mesmo assim todos os dias há mais gente chegando.

Crianças representam quase metade dos refugiados. Entre os adultos há produtores rurais e profissionais de diferentes áreas, como professores, médicos, além de comerciantes. Um contador etíope, de 53 anos, há mais de um mês dorme com outras sete pessoas da família em uma guarita de vigias abandonada de menos de seis metros quadrados. Sem colchão, todos se amontoam no chão à noite. Tentam se mexer o mínimo possível. “Não dá pra dormir, a gente fica com a guerra na cabeça, não tem como descansar”, disse. Ele exibiu com orgulho o crachá e repetiu três vezes que trabalha há mais de trinta anos para o governo. Duas filhas dele estão desaparecidas.

Em fogareiros improvisados, mulheres preparam algo para comer, cozinhando em panelas velhas o alimento que sequer sabiam quem havia doado. Com poucos utensílios, grupos de cinco ou seis pessoas se sentam ao redor de pequenas bacias onde a comida é servida. Uma lanterna ilumina o grande prato comunitário. Lentamente, as mãos alcançam a comida: feijão e uma espécie de farinha de milho.

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Deixar para trás tudo o que construíram ao longo de suas vidas para sobreviver precariamente no Sudão foi a única opção para homens, mulheres, crianças, idosos do Tigré que decidiram cruzar a fronteira. Famílias que até pouco tempo atrás estavam inteiras, juntas, mas hoje se encontram dilaceradas. Um outro etíope, de 30 anos, havia chegado ao local horas antes da reportagem, depois de sete dias caminhando. Trouxe apenas a roupa do corpo e a esperança de um dia rever os dois irmãos que deixou para trás.  Agachado, usando uma surrada camisa social de manga curta, calça jeans rasgada e um já bem gasto par de sandálias, colocou as mãos sujas no chão de terra para mostrar onde dormiria naquela noite.

Arte Fernando Alvarus

A uns três metros de onde ele conversava com #Colaboa, duas mulheres estendiam no chão uma lona branca. Rapidamente crianças deitaram sobre ela, sorrindo, como se aquilo fosse uma farra em um acampamento com novos amiguinhos. Crianças eram as poucas que conseguiam sorrir com facilidade. Mas nem todas. Algumas tinham um olhar constantemente perdido, como adultos, que até semanas atrás tinham suas casas, suas propriedades, mas agora dormem olhando para as estrelas, de barriga vazia, já que o alimento é escasso.

Por volta das oito da noite, os fogareiros já estão apagados e a maioria está deitada. A tarde quente ficou para trás. A temperatura cai rapidamente à noite. Alguns conseguiram trazer da Etiópia um pouco de roupa de cama. O som mais alto que se ouve vem de uma criança que alterna choro e tosse. O desespero da mãe tentando acalmá-la é visível.

Quase ninguém consegue dormir. Quando alguém muda de posição no chão outros dão sinais de que também estão acordados. Não param de se coçar. Não há como tomar banho. Quando a vontade aperta, o jeito é achar um arbusto seco mais afastado para se esconder.

Homens do exército sudanês passam a noite patrulhando a área, muitos deles à paisana. O repórter foi abordado duas vezes por militares. O fato de não falar os idiomas locais o coloca como suspeito, o que era rapidamente é descartado ao mostrar a autorização dada pelo governo para a cobertura jornalística.

Os militares sudaneses procuram por etíopes integrantes do TPLF (sigla em inglês para Frente de Libertação do Povo Tigré) infiltrados entre os refugiados. Este partido atualmente governa a região do Tigré, que está em confronto com o exército do país. O TPLF já teve muita influência na política nacional, mas perdeu espaço em 2018 quando o atual primeiro ministro, Abyi Ahmed, chegou ao poder. No ano passado, Abyi Ahmed venceu o Nobel da Paz por ter colocado fim a guerra entre a Etiópia e a Eritréia, depois de 20 anos.

Henok, um jovem etíope que aos 22 anos cursava o último período de Engenharia de Mineração, mas agora vive como refugiado no país vizinho. Foto Vinícius de Assis

Agora a pressão internacional vem aumentando sobre o vencedor do Nobel que ignora o apelo da ONU e da União Africana por mais diálogo e menos conflito. Senadores norte-americanos querem que os Estados Unidos apliquem sanções contra a Etiópia. A União Europeia suspendeu 90 milhões de euros em ajuda ao país. Para Fisseha Tekle, pesquisador da Anistia Internacional especialista na região do chifre da África, a situação é alarmante: “A Anistia Internacional lembra às partes em conflito que devem estar cientes dos direitos humanos internacionais e das obrigações humanitárias internacionais ao conduzir a guerra, incluindo proteção de civis, evitando alvos indiscriminados de civis e facilitando o acesso a serviços humanitários”.

Vinicius Assis

É jornalista desde 2004. Atualmente é correspondente na África para a GloboNews e outros meios brasileiros. Coordenou o projeto de Jornalismo independente "E aí, vereador?", apoiado pela Associação Brasileira de Imprensa. Em 2014 foi um dos palestrantes do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, em São Paulo, quando falou sobre investigações em câmaras municipais.

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