Na segunda-feira passada, Josilene Soares dos Santos e Elaine (nome fictício), ambas de 29 anos, empregadas domésticas que trabalham na Zona Sul do Rio, cumpriram a rotina semanal de deixar filhos, dois de cada, na Obra do Berço. Uma instituição privada, fundada há 88 anos, que oferece atendimento gratuito a crianças filhas de famílias pobres.
No fim da tarde desta sexta, elas voltarão ao prédio da Lagoa para pegar os meninos, com quem passarão o fim de semana. Nesses cinco dias, Elaine ajudará a cuidar de uma criança de cinco anos com quem não tem laços familiares – é filha dos seus patrões.
Moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Josilene é uma das domésticas “que dormem”. Uma prática ainda tão presente na vida nacional que dispensa o complemento. Fica subentendido que o período de sono se dá no quarto de empregada da casa dos patrões. Ao contrário do que ocorre com outros trabalhadores, o descanso noturno das domésticas fora de casa não conta como hora trabalhada.
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O que mantém Josilene longe dos filhos durante a semana não é uma eventual exigência patronal, mas a ineficiência do transporte público, aliada histórica da manutenção da lógica da casa grande e da senzala. Os 42 minutos que, segundo o Google Maps, são necessários para vencer os 37 quilômetros que separam Belford Roxo da Lagoa transformam-se em quase quatro horas para quem depende de ônibus. Para chegar às 7h30 na Zona Sul, Josilene sai de casa às 3h40 – como seria inviável fazer isso todos os dias, achou mais simples dormir no Humaitá, na casa dos empregadores.
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Veja o que já enviamosElaine mora bem mais perto, na Favela da Rocinha, a menos de nove quilômetros da Lagoa, mas não teria como pegar os filhos menores – de dois e cinco anos – todos os dias. Além de ter um outro emprego, ela, três vezes por semana, só pode deixar o trabalho principal depois das 20h. Até lá tem que cuidar da filha dos patrões. Entre as crianças que ficam na Obra de segunda a sexta há duas cujas mães são babás, mulheres que, durante a semana, dedicam todo o seu tempo aos filhos alheios.
Poucas dão uma escapadinha durante a semana para ver os próprios filhos. Umas enfrentam resistência dos patrões em autorizar a saída; para outras é complicado bancar o custo das passagens. Há também aquelas que não suportam ouvir o choro dos filhos na hora em que são obrigadas a voltar para o trabalho.
Das 106 crianças atendidas pela Obra do Berço, 20 dormem lá de segunda a sexta, as demais, saem às 17h como numa creche convencional. Kátia Regina Teixeira, assistente social da instituição, diz que o número das que ficam por lá já foi bem maior, por muitos anos, todas as crianças atendidas só voltavam para casa nos fins de semana. O número teve que ser reduzido por conta de determinações que vieram na rabeira do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O Conanda, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, limitou em duas dezenas o número de crianças que podem ficar internadas num mesmo espaço físico, não importa se num galpão ou num prédio de quatro andares com refeitório, pré-escolar, aulas de capoeira, biblioteca, brinquedoteca, consultórios, enfermaria, pátios, dormitórios. Um edifício tombado pelo Iphan por ser o primeiro projeto criado por Oscar Niemeyer.
Para garantir o direito de dar casa aos pequenos durante a semana, a Obra do Berço conta com a boa vontade do Judiciário e do Ministério Público – uma legislação bem-intencionada deixou a instituição numa espécie de limbo ao prever que abrigos têm que funcionar de segunda a segunda e são destinados apenas para casos de abandono ou de graves ameaças às crianças. A presidente da Obra, Maria Luiza Marinho, frisa que o acolhimento integral não faz parte de seus objetivos. “Buscamos sempre reforçar o vínculo familiar”, diz.
Na prática, sem a emenda oferecida pela Obra e garantida pela Justiça e pelo MP, o soneto de tantas outras mães trabalhadoras que vivem sem o marido ou companheiro e sem estrutura familiar seria impossível de ser escrito. Além do menino de três anos e da menina de dois, Josilene tem dois filhos, de 10 e 12 anos, que durante a semana ficam aos cuidados “de uma menina”, vizinha que é remunerada para cuidar das crianças, que, assim, passam a maior parte dos dias longe da mãe. Elaine tem pela frente um problema adicional. Um de seus meninos completará em dezembro seis anos – idade-limite para o acolhimento na Casa do Berço. A equipe da instituição tenta encontrar alternativas em escolas de tempo integral, mas a conta não fecha já que, obrigatoriamente, o garoto terá que passar a voltar para casa todos dias. “Eles deveriam ficar aqui até os 30 anos”, brinca Elaine.
No próximo dia 26, Dia dos Avós na tradição católica, a Obra do Berço vai inaugurar um espaço exclusivo para as crianças que dormem lá, que ficarão com todo o quarto andar do prédio. A presidente da instituição diz que o novo lugar vai garantir um ambiente mais acolhedor – as meninas e os meninos passarão, por exemplo, a tomar café da manhã na cozinha “de casa”. A transformação só será possível com a ajuda de voluntários, encarregados de carregar e montar os móveis.
Manter tantos serviços, que demandam o trabalho de 47 funcionários, custa caro, entre R$ 40 e R$ 50 diários por cada criança, algo em torno de R$ 145 mil mensais. Uma despesa bancada por associados da Obra, pela renda de alguns eventos beneficentes e por convênios com o poder público – por falar nisso, desde dezembro que o governo estadual não deposita sua contribuição de R$ 9 mil mensais.
Uma conversa com a equipe responsável pela Obra do Berço revela um resumo das muitas mazelas brasileiras. Crianças lá atendidas são resultado de fatores que costumam associar pobreza, subemprego, abandono, gravidez precoce, ineficiência do Estado, ausência paterna – a maioria das 106 crianças atendidas não tem contato com seus pais. A falta da figura paterna é tão presente entre as crianças atendidas pela Obra que por lá não se comemora dia dos Pais ou das Mães, mas o Dia da Família, data-ônibus que permite homenagens também a tias e avós que volta e meia assumem a responsabilidade por aquelas crianças.
Manter a criança longe da família durante cinco dias é uma solução muito distante da ideal, mas que pelo menos impede que as domésticas e babás “que dormem” não sejam uma nova versão do Pedreiro Waldemar, personagem da marchinha de Wilson Batista. Aquele sujeito que fazia tanta casa, e não tinha casa para morar. “Sou sonhadora e otimista”, ressalta Maria Luiza, sobrinha-neta de uma das fundadoras da Obra.
boa tarde,
já fiz pedido de ser voluntaria dessa casa,e ate hj não fui chamada
trabalho hj em outro lugar,mas ainda desponho de tempo para ajudar.
se ainda estiverem precisando podem entrar em contato.
Também já estive por lá e ainda não recebi retorno!
Adoraria dar algumas horas do meu dia, assim como foi dito na reportagem que a ” Elaine ajudará a cuidar de uma criança de cinco anos com quem não tem laços familiares – é filha dos seus patrões ” , eu gostaria muito de estar próxima, contribuindo com carinho e cuidar dos filhos dela e de outras que vivem essa rotina tão pesada.
Por que a nossa ajuda não é aceita – vide comentário acima da Angela Gomez
Regina, eles aceitam doações e trabalho voluntário.
http://www.aobradobercorj.org.br/index.php?pg=institucional.php&hash=A70171903941
Foi exatamente o que pensei: voluntariado. E daí vejo aqui duas pessoas que não receberam retorno da Obra, depois de oferecimento de ajuda. Qual será o problema?
http://www.aobradobercorj.org.br/index.php?pg=institucional.php&hash=A70171903941
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