À procura da batida social perfeita

Único brasileiro no Stomp, baiano toca projeto na comunidade pobre onde nasceu

Por Telma Alvarenga | ODS 1ODS 9 • Publicada em 29 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 31 de agosto de 2016 - 12:48

Marivaldo dos Santos, em uma apresentação com o Stomp: projeto em Salvador
Marivaldo (à esquerda), em uma apresentação do Stomp: na ponte aérea entre Nova York e Salvador. Foto: Divulgação
Marivaldo (à esquerda), em uma apresentação do Stomp: na ponte aérea entre Nova York e Salvador. Foto: Divulgação

Único brasileiro no consagrado Stomp, Marivaldo dos Santos saiu de Salvador em 1991, para ganhar a vida como músico em Nova York. Foi, viu e, cinco anos depois, venceu uma audição, entre mais de mil candidatos, para integrar um dos mais importantes grupos percussivos do mundo. Mas a Bahia jamais lhe saiu do pensamento. Mais especificamente, o Nordeste de Amaralina, comunidade pobre, com forte presença do tráfico de drogas, onde ele, filho de uma costureira e de um carpinteiro, nasceu e foi criado. “Meu coração está lá. As raízes são muito fortes”. O amor pela sua terra, a gratidão por tudo o que conquistou, aliado ao sentimento de que precisava fazer algo para dar uma nova perspectiva a meninos que, como ele, cresceram naquelas vielas, formam os pilares sólidos de uma ponte que Marivaldo construiu¸ há quase cinco anos, entre a Big Apple e o seu Nordeste. Em janeiro de 2012, criou o projeto socioeducativo cultural Quabales, onde, hoje, cerca de 60 crianças e adolescentes participam de oficinas de teoria musical, percussão, violão, break dance e performance percussiva, além de aprender a criar instrumentos, a partir de materiais recicláveis. O nome, aliás, é o mesmo que batiza um instrumento criado por Marivaldo: “Qua”, por ter quatro bocas, e “bales”, por ter o formato de timbales (espécies de tambores).

As oficinas de música para crianças e adolescentes são gratuitas. O único pré-requisito é estar matriculado na escola. “Quis dividir o que aprendi pelo mundo”, comenta o multi-instrumentista e compositor. “Sempre que vou a Salvador, vejo as necessidades do bairro, que são gritantes… Resolvi agir. Acho que é um pouco meu dever pelo menos tentar fazer alguma coisa. O Nordeste (de Amaralina) tem muitos talentos desperdiçados e várias pessoas querendo mudar, precisando de oportunidades. Não é preciso muito, não: só força de vontade e união. Tento dividir o pouco que conquistei para plantar um futuro melhor. Isso me faz um bem inexplicável”.

A garotada do Quabales, no Carnaval de Salvador: instrumentos criados com material reciclável. Foto: Divulgação

Há quase 20 anos, Marivaldo faz parte do elenco fixo do Stomp em Nova York, que está em cartaz na Broadway há mais de duas décadas. Ele também tem no currículo trabalhos com artistas renomados – internacionais e nacionais -, como Sting, Paul Simon, Lauryn Hill, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Ivete Sangalo…  Desde que criou o Quabales, voa pelo menos quatro vezes por ano rumo a Salvador, para acompanhar de perto o desenvolvimento dos alunos. O projeto promove a fusão da percussão baiana com a linguagem consagrada do Stomp, que mistura música, dança e teatro em performances vigorosas e bem-humoradas – e inspira grupos no mundo inteiro. Seus músicos tiram som de objetos nada convencionais, como vassouras, latões de lixo e até carrinhos de supermercado. Graças ao prestígio do baiano entre seus pares, o Quabales é o único projeto social fora dos Estados Unidos e da Inglaterra (onde o Stomp nasceu) que conta com o apoio oficial do grupo . “Marivaldo tem permissão para usar e ensinar a linguagem original do Stomp”, diz Fernanda Mello dos Santos, mulher do músico e braço direito dele no projeto baiano. Integrantes da trupe internacional viajaram mais de uma vez a Salvador para encontros com os jovens aprendizes do Nordeste de Amaralina. E a parceria, muito em breve, vai crescer. “Vem coisa boa por aí”, avisa Fernanda, que assina a direção geral do Quabales, enquanto Marivaldo assume a direção artística. Atriz e dançarina, na Big Apple a gaúcha dá aulas de dança e movimento para atores, em um curso de mestrado, na New York University.

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Marivaldo cresceu em um ambiente musical. Seus pais eram integrantes da escola de samba Diplomatas de Amaralina. Ela, como porta-bandeira. Ele, como diretor. O percussionista saiu de Salvador aos 18 anos, para atender a um chamado da irmã, a coreógrafa Rosângela Silvestre, que tinha se mudado para Nova York. Ela estava trabalhando em uma companhia de dança americana e queria resgatar com ele a parceria iniciada na Bahia: era Marivaldo quem compunha as músicas das coreografias que Rosângela criava. Em pouco tempo na terra de Barack Obama, o baiano começou a trabalhar com o saxofonista Steve Coleman e passou quase dois anos acompanhando o jazzista em uma turnê. Nas folgas, unia trabalho e diversão, apresentando-se com amigos no Central Park, em performances que misturavam música e capoeira. Juntava muita gente para assistir. As contribuições espontâneas do público ajudavam a engordar o orçamento no começo da vida nova-iorquina. [g1_quote author_name=”Marivaldo dos Santos” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Quanto mais a gente trabalha o individuo, descobrindo e valorizando seus talentos, fazendo com que ele seja respeitado, elevando a sua autoestima, mais essa realidade do tráfico de drogas perde seu encanto

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Em 1996, incentivado por amigos a fazer a audição para o Stomp, Marivaldo titubeou. Sabia que, se fosse escolhido, teria de embarcar em turnê com o grupo. Tinha passado muito tempo na estrada com Coleman. Estava cansado de viajar. Queria se assentar em Nova York. Foi assim, despretensiosamente, sem grandes expectativas, que ele encarou o teste. Teve de adiar os planos de parar quieto na cidade que tinha escolhido para viver. Eleito entre mais de mil candidatos, lá foi ele para uma turnê de dois anos com o Stomp. Depois, entrou para o elenco fixo da trupe em Nova York. Viagens agora, só para turnês na América Latina.  Ou para acompanhar seu projeto social na Bahia.

Marivaldo (de turbante), com Liminha (atrás dele, de boné) e os meninos do Urban Sounds. Foto: Divulgação

O Quabales já deu fruto: alunos integram um grupo performático profissional: o Quabales Show – Urban Sounds. “Ele foi criado a partir do Quabales Social, para levar ao grande público o nosso trabalho, a nossa linguagem”, diz Marivaldo. Os meninos estiveram no Rio, em junho deste ano, para gravar no estúdio nas Nuvens, de Liminha, renomado produtor musical, que já trabalhou com grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lulu Santos, Os Paralamas do Sucesso. “Vamos lançar nosso primeiro CD, que vem cheio de surpresas”.

Jovens músicos da comunidade se apresentaram nos últimos cinco carnavais de Salvador. Alguns já tocaram no exterior. Três deles – Vamarlei, Claudio Henrique e Alana Conceição – acompanharam Ivete Sangalo em Miami, na noite de gala do BrazilFoundation, em 2014, quando a cantora foi premiada. Outros participaram, ao lado de Marivaldo, do Festival de Montreux, na Suíça, no ano passado (Veja o vídeo abaixo).  “Me orgulho muito do que já conquistamos”, diz. Marivaldo quer mais. O sonho é construir um espaço cultural na comunidade onde nasceu. “Ofereceremos vários cursos. Será um lugar para produzir só coisas positivas: da culinária à arte em geral”. A ideia, segundo ele, é também promover intercâmbios instituições de outros estados e países, abrindo para os meninos a possibilidade de bolsas de estudos no exterior.

O Objetivo primordial é esse: abrir janelas, apontar caminhos para que os meninos possam pavimentar sua trajetória longe da tentação do tráfico de drogas, que, desde a saída de Marivaldo do Nordeste de Amaralina, há 25 anos, só fez crescer. “Quanto mais a gente trabalha o indivíduo, descobrindo e valorizando seus talentos, fazendo com que ele seja respeitado, elevando a sua autoestima, mais essa realidade do tráfico de drogas perde seu encanto. E eles começam a construir sua própria historia, tendo seu espaço e valor na sociedade”, diz. “Comigo não foi diferente. Sou muito concentrado no que faço e levo tudo muito a sério. Disciplina é o melhor caminho pra se conquistar qualquer coisa na vida”.

Telma Alvarenga

Jornalista formada pela PUC-Rio. Tem passagens pela revista Veja, Veja Rio, Jornal do Brasil, O Globo, Correio (BA) e Projeto #Colabora, desempenhando funções de editora, colunista e repórter. Professora no curso de Comunicação Social da Faculdade Social da Bahia em 2010, está finalizando seu mestrado no Programa de Pós-graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio

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