Justiça Restaurativa: uma solução para a superlotação das cadeias?

Círculo restaurativo: metodologia tenta promover diálogo entre vítima e autor do delito (Foto CCJ/Divulgação)

Empregada em 16 estados, metodologia se baseia no diálogo entre vítima e infrator, com bons resultados

Por Larissa Pereira | ODS 1 • Publicada em 13 de outubro de 2017 - 18:20 • Atualizada em 18 de outubro de 2017 - 21:24

Círculo restaurativo: metodologia tenta promover diálogo entre vítima e autor do delito (Foto CCJ/Divulgação)
Círculo restaurativo: metodologia tenta promover diálogo entre vítima e autor do delito (Foto CCJ/Divulgação)
Círculo restaurativo: metodologia tenta promover diálogo entre vítima e autor do delito (Foto CCJ/Divulgação)

Em Caxias do Sul (RS), um assalto à mão armada envolvendo três adolescentes encontrou uma saída em uma nova metodologia de solução de conflitos. Um mês depois do roubo de um malote com o valor de R$ 15 mil, os adolescentes foram descobertos. O caso, que poderia terminar com mais três adolescentes em unidades socioeducativas lotadas, foi resolvido com base na Justiça Restaurativa, ou os chamados círculos restaurativos. O método, paralelo ao processo convencional, considera a infração pelo impacto causado na vida da vítima, e não pela violação da lei, sendo o diálogo a principal arma. No Brasil, um dos pioneiros e referência nessa metodologia é o desembargador Leoberto Brancher, de Caxias do Sul.

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Eu poderia estar morto hoje

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No caso do assalto, os três adolescentes, os familiares e o dono do restaurante roubado foram convidados a participar do círculo, onde, juntos, decidiram a melhor forma de solucionar o conflito. Os jovens cumpriram regime de liberdade assistida e devolveram o valor roubado. Para Roger Modelski, um dos adolescentes, a Justiça Restaurativa mudou sua forma de pensar e sem ela “eu poderia estar morto hoje”, afirma. Roger, hoje com 23 anos, conta que a presença do dono do restaurante nos círculos e a esperança dele de que os jovens poderiam mudar foi fundamental.

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O número de círculos realizados em que as partes, ao seu final chegam a um acordo, ultrapassa, em Ponta Grossa, 96%

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Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça mostra que 43,3% dos jovens em regime de internação são reincidentes. No Canadá, que inspirou o Brasil a aplicar a Justiça Restaurativa, a taxa de reincidência é de 5%. Ainda não há dados concretos sobre os resultados da metodologia no Brasil, mas segundo a juíza Laryssa Muniz, de Ponta Grossa, “podemos dizer que o índice de consenso, ou seja, o número de círculos realizados em que as partes, ao seu final, chegam a um acordo ultrapassa, em Ponta Grossa, 96%, o que não se encontra em nenhum outro meio autocompositivo.”

“Se não tem conflito se faz um tipo de abordagem com diálogo, fortalecimento de comunidade etc. Quando há conflito é feito um pré-círculo com cada participante, um círculo e depois de algum tempo o pós-círculo para avaliar o cumprimento do acordo construído. Há círculos para construir e fortalecer relacionamentos e círculos para restaurar relacionamentos quando estes foram rompidos, para traçar um plano de responsabilização e reparação de dados” explica Eva Domingues, juíza e coordenadora do programa Caxias de Paz.

Rondônia, Alagoas e Piauí não cumprem metas

A Justiça Restaurativa ficou mundialmente conhecida pelo livro Trocando as Lentes: Um Novo Foco sobre Crime e Justiça, do americano Howard Zehr, na década de 1990. Mas foi no ano passado que o Conselho Nacional de Justiça decidiu incentivar de forma mais direta a adoção da metodologia no país, incluindo o tema como uma das metas de 2016. Dos 27 estados brasileiros, 16 cumpriram 100% da meta estabelecida pelo CNJ, que exigia dos tribunais estaduais a instituição formal do programa, espaço físico, materiais e recursos humanos disponíveis, ações de capacitação, promoção de encontro entre as partes durante o processo dos círculos e suporte de atendimento para as pessoas indiretamente atingidas. Os estados de Rondônia, Alagoas e Piauí são os casos mais críticos, não cumpriram nenhum dos oito itens da meta. Já em Caxias do Sul, onde ocorreu o caso dos três jovens, 2.318 casos encaminhados pela Vara da Infância e da Juventude e pelo Juizado Especial Criminal foram atendidos de novembro de 2012 a dezembro de 2016.

No Rio, falta educação

O Rio de Janeiro, que atingiu 71% da meta, já está buscando sanar os dois itens que faltaram: a instituição formal do programa e a oferta de cursos de capacitação. Segundo o desembargador e presidente do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais e Solução de Conflitos (Nupemec), César Cury, uma comissão está cuidando da implantação gradativa da justiça restaurativa. Quanto aos cursos de formação, Cury explica que o tribunal oferece formação de facilitadores a partir da parceria com outros tribunais e instituições, mas que pretende ter seus cursos próprios, se tornando um polo formador. Para a implantação do projeto piloto no Juizado Especial Criminal do Leblon, foi estabelecida uma parceria com o Instituto de Soluções Avançadas, uma instituição privada de formação em Mediação de Conflitos, Facilitação de Diálogos, Processos de Construção de Consenso e Processos Circulares. O foco do curso eram os conflitos familiares e domésticos, além das relações de vizinhança, já que os Juizados Especiais Criminais atendem aos casos de menor potencial ofensivo, como um vizinho que deixou o som alto e o caso foi parar na Justiça por falta de diálogo.

Curso de Justiça Restaurativa no Rio Grande do Sul, na Pastoral Carcerária (Foto Divulgação/Agência CNJ)

Outro curso de formação foi organizado pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Cedeca, como a segunda etapa da implantação da justiça restaurativa voltada para os casos de adolescentes em conflito com a lei. A primeira etapa foi um processo de sensibilização da sociedade, com dois seminários na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro, reunindo especialistas brasileiros e estrangeiros. A segunda etapa foi um curso de formação com 100 horas teóricas e 30 horas práticas. Foram formados 41 facilitadores, entre funcionários do município, da defensoria, do Degase, ONGs e outros. Na terceira etapa, a meta era atender 50 adolescentes, que podiam ser encaminhados pelo Degase ou pela Vara da Infância e da Juventude. No entanto, dos 65 adolescentes em conflito com a lei que foram encaminhados, apenas 44 aceitaram participar.

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Outra dificuldade é contatar os familiares ou a pessoa que o adolescente indica para acompanhá-lo nos círculos. Dos 44 casos, em apenas 21 deles foi possível contatar as pessoas indicadas pelo adolescente

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“A grande dificuldade foi as instituições entenderem bem o que era a justiça restaurativa e fazerem o encaminhamento. Outra dificuldade é contatar os familiares ou a pessoa que o adolescente indica para acompanhá-lo nos círculos. Dos 44 casos, em apenas 21 deles foi possível contatar as pessoas indicadas pelo adolescente. Em seguida, há a dificuldade de entrar em contato com a vítima para ir além da fase de pré-círculo, o que só foi possível em quatro casos”, conta o coordenador do Cedeca, Pedro Pereira.

Outros dois casos tiveram compromissos estabelecidos, um por uma vítima substituta, como um membro da família, e outro por reflexão do próprio adolescente, que se comprometeu com o facilitador e com sua própria família.

Justiça Restaurativa não é para todos

Mas nem todos os casos são aptos a participar da Justiça Restaurativa. Apesar de não haver restrições em relação à infração cometida pelo adolescente, é necessário que o acusado tenha consciência de sua culpa e assim não represente risco à vítima. Após uma equipe analisar a situação dos envolvidos, ambos são convidados a participar e, se aceitarem, passam por um atendimento individual, que busca prepará-los para os círculos. Os círculos são compostos por um facilitador, que media o diálogo, a vítima, o infrator, os familiares e membros da comunidade. Todas as partes têm espaço para se expressar, e o objetivo é mostrar como o crime impactou a vida de cada um, direta ou indiretamente. Em seguida, são propostas as melhores maneiras de solucionar o conflito. Juntos, todos produzem um texto em que ficam esclarecidos os compromissos assumidos, normalmente pelo acusado, que podem ser, por exemplo, serviços comunitários. Esse compromisso, pensado e estabelecido no processo dos círculos, não substitui a pena do processo tradicional, executada pelo juiz.

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È uma grande inovação, principalmente em relação à vítima, porque a vítima, ao longo do processo, seja ele penal ou ato infracional, na maioria das vezes, se sente abandonada porque ela é ouvida pontualmente na audiência sobre o que aconteceu

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Para o coordenador do Cedeca, a Justiça Restaurativa “é uma grande inovação, principalmente em relação à vítima, porque a vítima, ao longo do processo, seja ele penal ou ato infracional, na maioria das vezes, se sente abandonada porque ela é ouvida pontualmente na audiência sobre o que aconteceu. Não existe nas audiências tradicionais um espaço em que a vítima diga como é que ela se sentiu, como aquilo impactou na vida dela, quais são as necessidades dela a partir daquilo que aconteceu”.

Para Pereira, apesar da legislação atual ser avançada, a Justiça tradicional não dá conta de situações concretas, e chama a atenção para o excesso de encarceramento de adolescentes em conflito com a lei: “Infelizmente a Justiça da Infância acabou replicando em muitas práticas a Justiça comum, que já é falha e segue uma lógica mundial de encarceramento. Muitos adolescentes que poderiam receber penas até previstas pelo Estatuto [da Criança e do Adolescente], de medidas em meio aberto, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, eram colocados nas unidades de internação, e isso ampliou o caos”.

Grupo de trabalho sobre Justiça Restaurativa no Conselho Nacional de Justiça (Foto Divulgação /Agência CNJ/Gil Ferreira)

No ano de 2014, 24.628 adolescentes brasileiros, de 12 a 17 anos, cumpriam medidas socioeducativas como internação, internação provisória e em semiliberdade, sendo mais da metade em regime fechado. São Paulo é o estado do país com o maior número de adolescentes em conflito com a lei, são 9.905 adolescentes, seguido por Minas Gerais, com 1.811, Pernambuco, com 1.595, e Rio de Janeiro com 1.536. Além disso, 67.359 adolescentes cumprem medidas de liberdade assistida e serviço comunitário. Os dados são do Levantamento Anual Sinase 2014, publicado este ano.

Em 2016, além da meta de expansão da Justiça Restaurativa, o Conselho Nacional de Justiça instaurou uma resolução que define como deve ser aplicada a metodologia. A resolução é resultado de um grupo de trabalho no CNJ, do qual participou a juíza Laryssa Muniz, de Ponta Grossa, no Paraná. Para ela, a resolução 225/2016 “auxiliou os tribunais para que iniciassem a estruturação dos projetos em todo país. Alguns tribunais estão avançados e outros, ainda iniciam as tentativas, contudo, a resolução do CNJ dá confiança para que o projeto seja levado adiante.”

Mediação e conciliação são alternativas

Em Caxias do Sul, uma lei municipal já garante a prática como uma política pública desde 2014. A juíza Eva Domingues explica que para evitar resistência, foi adotada uma estratégia de sensibilização, criando aliados a partir de reflexões conceituais e demonstração de resultados preliminares. No caso do Rio de Janeiro, segundo o desembargador César Cury, um plano estadual de solução consensual de conflito está em processo de elaboração junto ao Ministério Público, Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil, para ampliar a adoção da metodologia em todo o estado nos próximos dois anos. O plano, que será apresentado ao Legislativo, contempla não só a Justiça Restaurativa, mas todas as novas metodologias, como a mediação e a conciliação.

Para o desembargador, a maior dificuldade para a adoção do método no Brasil ainda é a associação à impunidade: “A primeira grande dificuldade é de ordem cultural, que passa por uma outra dificuldade, que é a informacional. Precisamos comunicar a população, apresentar o tema, para que seja conhecido, possa ser debatido e de alguma forma assimilado, absorvido na cultura geral”, conclui Cury. 

Larissa Pereira

Carioca, suburbana, apaixonada pela cidade do Rio e por seus personagens. Estudante de Jornalismo na PUC-Rio e sonhadora o bastante para acreditar que pode mudar o mundo contando histórias inspiradoras. Atualmente tira do papel um antigo projeto, inspirado em sua avó, que homenageia mulheres extraordinárias, o Marias do Brasil.

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