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É preciso água para matar a fome

Da mesma forma que pessoas pretas e pardas têm menos acesso à água e saneamento, são também as que mais enfrentam a fome e má qualidade da alimentação

ODS 1ODS 2 • Publicada em 8 de abril de 2024 - 09:46 • Atualizada em 11 de abril de 2024 - 09:08

(Francisco Menezes e Junior Aleixo*) – Muitas vezes, quando o tema da segurança alimentar e nutricional é tratado, aparece uma compreensão de que para garanti-la basta haver acesso aos alimentos, seja porque se tem o poder aquisitivo para comprá-los ou condições para produzi-los, ou, ainda, dispor deles por alguma outra forma, a exemplo de doações ou iniciativas de políticas sociais diversas. Tudo isso importa, e muito, mas infelizmente não é o bastante. Vários outros fatores são determinantes para que o direito à alimentação segura e de qualidade seja estabelecido. Sem dúvida, o consumo de uma alimentação saudável, com quantidade e composição nutricional apropriadas, é elemento chave. Porém, é fundamental ter em mente que este objetivo só é plenamente alcançável se houver um contexto de vida digna, com boas condições sociais, ambientais e sanitárias, e com serviços públicos essenciais disponíveis. A água desempenha aí um papel indispensável.

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Recentemente, o IBGE divulgou dados do Censo Demográfico 2022 acerca da situação do saneamento no país. O levantamento registra avanços sobre a cobertura de abastecimento, com uma elevação da proporção de domicílios que passaram a ter acesso a fontes mais seguras de água potável, além de uma melhoria ao acesso e a redes de esgotamento – 62,5% da população, segundo o Censo, morava em domicílios conectados à rede de coleta de esgoto em 2022. No entanto, as desigualdades regionais, de cor e raça no país continuam a saltar aos olhos e demonstram a importância de análises mais rigorosas sobre esse quadro.

Agricultora apoiada pelo Fundo Áagua rega horta no Maranhão: dados mostram que Onde há menor e pior acesso à água, há mais fome (Foto: Ingrid Barros / Divulgação / ActionAid)
Agricultora apoiada pelo Fundo Áagua rega horta no Maranhão: dados mostram que Onde há menor e pior acesso à água, há mais fome (Foto: Ingrid Barros / Divulgação / ActionAid)

Os moradores de domicílios nas regiões Norte e Nordeste continuam a enfrentar condições precárias de acesso a esgotamento sanitário, inclusive, abaixo da média nacional para os anos 2000, 2010 e 2022. Em 2000, a média nacional para domicílios com esgotamento sanitário para grandes regiões por rede coletora, pluvial ou fossa séptica era de 59,2%, enquanto a região Norte obtinha 33,5% e o Nordeste, 36%. Após duas décadas, a média nacional cresceu para 75,7%, a região Norte subiu para 46,4%, e o Nordeste, 58,1%. Ou seja, Norte e Nordeste seguem ainda com índices muito abaixo da média nacional. As regiões Sul e Sudeste do Brasil são as localidades que apresentaram uma maior parcela dos domicílios com coleta de esgoto, inclusive, acima da média nacional, 83,9% e 90,7%, respectivamente. No geral, mesmo levando em consideração as diferentes formas de coleta de esgoto, tanto as ligadas à rede e as que não são ligadas, cerca de 24% dos domicílios ainda usavam recursos precários de esgotamento sanitário. Isso equivale a cerca de 49 milhões de pessoas.

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Já por um outro recorte para as desigualdades, os dados coletados também informam que o acesso precário ao saneamento em geral, que conta com o abastecimento por rede de água, coleta de esgoto e coleta de lixo, afeta, especialmente, grupos de faixa etária mais jovens (crianças e jovens), pretos, pardos e indígenas. Embora a localização geográfica seja um fator importante para analisar este quadro, uma vez que a maior parte da população preta, parda e indígena esteja localizada nas regiões Norte e Nordeste, há, da mesma forma, a acentuação das desigualdades socioeconômicas que reflete no acesso aos serviços básicos de saneamento. Ainda de acordo com o Censo, pessoas autodeclaradas pretas e pardas contabilizadas são 69% dos que vivem sem esgotamento adequado.

Não à toa, são recortes semelhantes de desigualdades que também se destacam quando olhados os índices de insegurança alimentar e fome no país. Onde há menor e pior acesso à água, há mais fome. Retomando os dados do estudo Vigisan, apoiado pela ActionAid, as formas mais severas de insegurança alimentar (moderada e grave) chegava a 38% dos domicílios em 2022, sendo que os índices sobem para 54,6% na região Norte e 43,6% no Nordeste. Da mesma forma que pessoas pretas e pardas têm menos acesso à água e saneamento, são também as que mais enfrentam a fome e má qualidade da alimentação: 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas conviviam com restrição de alimentos em 2022 (Vigisan).

Nesse sentido, água é também alimento. Trata-se de contar com o abastecimento de água potável, o tratamento de esgoto, a coleta e destinação adequada de resíduos sólidos, além de medidas de drenagem e manejo de águas pluviais quando assim se requer. A falta de acesso à água limpa, por exemplo, tem enorme impacto na geração de situações de contaminação dos alimentos, na interdependência da produção agroalimentar e o consequente adoecimento daqueles que os consomem. A diarreia, que é uma doença que acontece frequentemente como resultado da contaminação da água e dos alimentos, pode desdobrar em problemas como a desnutrição crônica e retardos no desenvolvimento de peso e altura e, também, no desenvolvimento cognitivo, podendo levar até à morte.

Não há como olhar os dados e ignorar cruzamentos entre as diferentes formas de discriminação racial, seja alimentar ou ambiental, e a aplicação disso em políticas públicas. Porque são as populações negras, quilombolas, periféricas – em especial mulheres –, aquelas que mesmo com os avanços de políticas públicas em geral ainda continuam excluídas do acesso adequado aos serviços públicos de garantia da vida humana (e não humana). São essas populações que menos recebem investimentos públicos, que têm suas regiões vulnerabilizadas e ainda são maior alvo de dinâmicas predatórias impostas por grandes empreendimentos, seja de monocultura agrícola, ou por uso irrestrito dos recursos hídricos.

É fato que medidas emergenciais, que possibilitam aumentar a renda e, com isso, o acesso à alimentação, como as que foram retomadas a partir de 2023, têm o poder de obter resultados positivos, como constatou o estudo “Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Tendências e estimativas recentes”, divulgado em março pelo Instituto Fome Zero, que estima que 13 milhões de pessoas saíram da condição de insegurança alimentar grave no ano passado. Mas, o que poderá dar sustentação mais definitiva a um processo de erradicação da fome e de garantia da soberania e segurança alimentar no Brasil é a realização de transformações estruturais, que revertam as pronunciadas desigualdades existentes.

No que diz respeito ao saneamento, há que se destinar recursos para os investimentos necessários para as áreas mais vulnerabilizadas, sempre com o controle e participação social na tomada de decisões, privilegiando as regiões Norte e Nordeste e contemplando os grupos sociais, entre jovens, população negra e povos indígenas. Ainda precisamos lembrar que o racismo é estrutural e, por mais que haja avanços no acesso à água e à alimentação, esse avanço precisará incorporar parcelas da população que não estão sendo contempladas historicamente, e os dados aqui relatados demonstram isso.

*Francisco Menezes é economista e consultor de políticas na ActionAid; Junior Aleixo é pesquisador e especialista em Justiça Climática na ActionAid.

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