
(Por Marcos Machado, com colaboração de Lívia Cruz*) – Parque Analândia, São João de Meriti, Rio de Janeiro. A rotina era sempre a mesma: diariamente, o jovem Thiago, de 8 anos, parava em frente ao portão no muro verde da rua Gil de Queiroz e, com um misto de timidez e curiosidade, olhava através das grades. É ali, naquela casa, que funciona o lar do projeto social Há Esperança, criado, em 2013, por Tayana Leôncio, teóloga, de 29 anos, para oferecer aulas de reforço escolar a jovens e adultos. “Tia, me leva pra casa, eu quero estudar”, disse o menino certa vez à voluntária, que se emociona com a lembrança. A realidade de Thiago, no entanto, é a de muitos. Até 2015, o país apresentava, aproximadamente, 13 milhões de analfabetos e 2,8 milhões de crianças e adolescentes fora da escola. O índice de evasão é alarmante: um a cada quatro alunos que inicia o Ensino Fundamental abandona os estudos antes de completar a última série.
Para além dos números, é preciso pensar nas pessoas. Em Tayana e na sua luta para levar conhecimento a essa comunidade. No pequeno Bruno, de 7 anos, que aprendeu recentemente a escrever o próprio nome – e faz questão de escrevê-lo no quadro. Na Aleksandra, de 32, que cria quatro filhos sozinha, mas quer estudar, à noite, para, nas palavras dela, “ser alguém na vida”. Na Milena, que sonha em conhecer a atriz Larissa Manoela. Em meio às dificuldades que a educação nacional enfrenta, o projeto surge como uma forma emblemática de resistência.
[g1_quote author_name=”Tayana Leôncio” author_description=”Teóloga idealizadora da ONG Há Esperança” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Muitos chegam aqui dizendo que não se acham bons o bastante, porque sofrem, há muito tempo, com o preconceito da sociedade
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Veja o que já enviamosA proposta é oferecer aulas complementares de português e matemática, em diferentes turnos. Às terças e quintas, pela manhã ou à tarde, jovens de 7 a 14 anos assistem às aulas ministradas por voluntários. À noite, das 18h30min às 19h30m, é a vez dos adultos. Uma voluntária, também moradora da comunidade, ministra aulas que exploram noções básicas de ortografia e de lógica matemática a um grupo de 7 adultos, também moradores de Analândia. Alguns deles, inclusive, são pais de alunos que frequentam o projeto nos outros turnos. Olhos atentos à lousa branca, eles veem surgir as primeiras letras que, juntas, ganham novos sentidos, formatos e trazem consigo um sabor de libertação.
Pouco mais de um ano depois de criada, a ONG Há Esperança ganhou, em 2016, o 3º lugar, na categoria práticas humanísticas, do Prêmio Juíza Patrícia Acioli de Direitos Humanos, oferecido pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj). Com o prêmio, foi possível construir a sede da entidade, onde são acompanhadas 35 famílias em situação de vulnerabilidade social. Entre as atividades, está a organização de passeios para levar mães e filhos a locais que saem da rotina da região, como museus e parques. O apoio logística vem do Viva Rio, que viabiliza locomoção e, quando necessário, ingressos.
Chama atenção a receptividade dos alunos e o carinho com que recebem os visitantes. Eles fazem questão de mostrar tudo o que já aprenderam: escrever o próprio nome, somar, subtrair, dividir, multiplicar… Segundo Tayana, o Há Esperança é “um grito de resistência”. Ela explica que veio daí o nome do projeto, pois, diante da falta da esperança, surge o desejo incontrolável de mudança e de enfrentar as adversidades. É uma forma de mostrar à sociedade que há pessoas que, apesar de terem suas vozes abafadas, querem e precisam ser ouvidas, como se dissessem “Eu estou aqui!”.
Em relação aos adultos, a voluntária diz que, muitas vezes, o trabalho é mais ligado ao resgate da autoestima dos alunos do que propriamente acadêmico-pedagógico. “Muitos chegam aqui dizendo que não se acham bons o bastante, porque sofrem, há muito tempo, com o preconceito da sociedade”.
Um dos pré-requisitos para assistir às aulas do projeto é estar matriculado em uma escola, cursando a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas surge o problema da falta de vagas, como explica Alekssandra, uma das moradoras mais antigas de Analândia, que tem frequentado as aulas no turno da noite. A escola pública mais próxima é o Ciep Brizolão 169, também em São João, mas as (poucas) vagas para a EJA já estavam completas. Os demais, em Duque de Caxias, são distantes e estão com longas listas de espera.
É nesse cenário que, mais do que nunca, o Há Esperança ganha força, uma vez que, além de promover essa trabalho complementar, estimula que os alunos procurem, também, maneiras de conseguir uma certificação legal, para fazê-los avançar no ensino e, claro, na vida. A ideia é expandir o projeto e ampliar o espaço, construindo mais uma sala de aula, de modo a tornar possível, por exemplo, que os adultos frequentem as aulas em outros turnos.
Tayana percebeu que a invisibilidade era um dos grandes problemas de crianças e adultos do Parque Analândia. Saiu pela comunidade tiranto fotos, que hoje fazem parte da exposição “Eu te Vejo”, montada na Biblioteca Leonel de Moura Brizola, em Duque de Caxias.
Quando se chega ao casarão com muro verde da rua Gil de Queiroz, no Parque Analândia, em São João de Meriti, vem a mente o conto Uma Esperança, de Clarice Lispector, em que a escritora brinca com o duplo sentido da palavra: o sentimento é o nome do inseto, que dizem ser sinônimo de bons presságios. “Aqui em casa pousou uma esperança”, escreve Clarice no começo do texto. Uma esperança pousou em Analândia, leve, frágil e delicada. Ouçamos, portanto, a mensagem que ela veio nos trazer, ecoando histórias daqueles cujas vozes são negligenciadas e esquecidas.