Superando os limites

Atriz e bailarina profissional, Moira Braga perdeu a visão quando e ainda era pequena, em decorrência de uma doença degenerativa na retina. Foto Yuri Fernandes

No Rio, tradicional escola de dança contrata professora cega e dá aula de diversidade

Por Ana Pinto | ODS 1 • Publicada em 27 de abril de 2018 - 08:00 • Atualizada em 23 de novembro de 2020 - 18:21

Atriz e bailarina profissional, Moira Braga perdeu a visão quando e ainda era pequena, em decorrência de uma doença degenerativa na retina. Foto Yuri Fernandes

A proposta é simples: experimente sentar em uma posição confortável e feche os olhos. Relaxe e preste atenção em sua postura: seus dedos das mãos estão soltos ou suas mãos estão cerradas em punho? Seu maxilar está relaxado ou tenso? Ainda com os olhos fechados, como você recebe os sons do ambiente em que está agora? Consegue perceber o contato da sua pele com o ar, com as roupas que está vestindo?

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Toda forma de arte é libertadora. E o artista com cegueira ou com qualquer tipo de deficiência, ou sem deficiência alguma, pode se descobrir muito através da arte. E pra arte, pra criatividade, não há limites.

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Certamente a tentativa de se desconectar das (muitas) estimulações visuais que recebemos a todo o momento não foi fácil, certo? Por isso, a cada início das aulas, a professora Moira Braga, 39 anos, pede às alunas do curso de formação em Dança Contemporânea da Escola Angel Vianna, no Rio de Janeiro, que percorram esse caminho.

Abrir as possibilidades dos outros sentidos do corpo, como a audição e o tato, faz parte da metodologia desenvolvida pela bailarina, coreógrafa e educadora Angel Vianna, que dá nome à tradicional escola de formação profissional. A condução realizada por Moira, no entanto, dá à experiência um contorno ainda mais sutil e também potente: a professora é cega.

A perda da visão aconteceu quando ela ainda era pequena, em decorrência de uma doença degenerativa na retina. Mas longe de impor uma limitação, a cegueira é encarada por Moira como apenas mais uma diferença existente entre os muitos corpos aptos a dançar ou se expressar artisticamente.

– Toda forma de arte é libertadora. E o artista com cegueira ou com qualquer tipo de deficiência, ou sem deficiência alguma, pode se descobrir muito através da arte. E pra arte, pra criatividade, não há limites.

Atriz e bailarina profissional, Moira conta que o desejo de ser artista sempre a acompanhou e quando menina brincava de cantar em frente ao espelho, atuar e dançar. Já em processo de perda da visão, chegou a frequentar um conservatório de música em Leopoldina, no interior de Minas Gerais, para onde a família se mudou quando ela tinha 7 anos. Mas a falta de habilidade dos professores para lidar com a sua condição fizeram-na afastar-se do curso.

De volta ao Rio e já formada em Jornalismo, aproximou-se de grupos de teatro que realizavam trabalhos com atores com e sem deficiência. Em 2007, convidada por uma amiga a participar de uma pesquisa de Mestrado sobre o corpo do artista cego no curso de Artes Cênicas, na UniRio, conheceu o trabalho de Angel Vianna. A partir dali, sua vida mudaria para sempre.

– A Angel foi dar uma aula de consciência corporal para nós e eu terminei chorando. Nunca tinha ouvido falar da metodologia criada por ela. Foi um divisor de águas em minha vida.

Moira Braga com alunas no início da aula: momento em que cada um tem a percepção de como está o seu corpo. Foto Yuri Fernandes
Moira Braga com alunas no início da aula: momento em que cada um tem a percepção de como está o seu corpo (Foto Yuri Fernandes)

O contato aproximou Moira da Escola e Faculdade Angel Vianna, onde formou-se no curso técnico de Recuperação Motora e Terapia pelo Movimento e, logo em seguida, na Pós-Graduação em Corpo, Educação e Diferenças. Desde então, ela preserva sua relação com a instituição e atua profissionalmente em espetáculos de teatro e dança, sendo atualmente integrante da Companhia de Dança Pulsar.

– Levei um tempo para deixar aflorar a minha artista, acreditar que eu poderia ser artista e viver da minha arte. Com Angel, aprendi que eu poderia dançar a minha própria dança, que poderia aprender dança de dentro pra fora, porque antes tinha a referência de aula de dança dessas em que o professor fica na frente e os alunos repetem o que ele faz. Sendo cega, eu não tinha essa oportunidade. E Angel vem falar que qualquer pessoa pode dançar: se você só pode mexer os olhos, então dance com os olhos.

O desafio de conduzir uma turma de formação profissional durante um ano surgiu do convite feito pela coordenadora pedagógica da escola, Andrea Chiesorin, companheira de trabalho de Moira na Pulsar e pesquisadora do Movimento e das Políticas Públicas de Acessibilidade. A coordenadora destaca que a escolha de Moira para integrar o corpo docente se deu por conta do desenvolvimento profissional da artista.

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A aula da Moira tem sido uma riqueza. Tem trabalhado muito um ponto entre a consciência corporal e ao mesmo tempo um aguçamento do sensorial com escuta, cuidado. Tem sido uma joia

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– Moira é dedicada, correu atrás de sua formação. Ela não foi selecionada por ser cega, mas sim pelo conjunto da obra dela, da sua dedicação à profissão artística. A escola abre esse espaço há muitos anos e é ótimo termos uma professora com a qualidade da Moira em nosso quadro. Ela ser cega é apenas mais uma característica da existência dela – ressalta Andrea.

Para as alunas que integram a turma da professora, a experiência tem revelado novos caminhos para a criação e também no exercício de cidadania.

– A aula da Moira tem sido uma riqueza. Tem trabalhado muito um ponto entre a consciência corporal e ao mesmo tempo um aguçamento do sensorial com escuta, cuidado. Tem sido uma joia. Ela tem essa riqueza, essa potência. Ainda não tinha visto uma aula assim – celebra Nina Terra, 30 anos, educadora e diretora cênica do grupo Em Bando.

– Tivemos uma aula em que a Moira pediu para que nós contássemos a história do nosso nome de olhos fechados. Então, me peguei reaprendendo coisas das minhas amigas que já conheço há mais de um ano. Foi um outro lugar que acessei: ficar de olho fechado e realmente ouvi-las – destaca Ayeska Borenstein Ariza, 25 anos – Nunca tive proximidade com alguém com deficiência visual então está me abrindo outros lugares, estou sempre observando, aprendendo sobre essa vivência.

No Brasil, há mais de seis milhões de deficientes visuais, dos quais 560 mil são considerados cegos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),mas ainda são raras as trajetórias como as de Moira. Para que mais pessoas com deficiência tenham acesso à qualificação profissional e também possam sonhar – e ousar – ser artistas, Moira acredita que é preciso mais acesso à informação e também trabalhos como que a escola vem desenvolvendo.

– Acho que a importância de ter um professor com deficiência é reforçar isso o que a Escola e a Metodologia Angel Vianna defendem, de que não há limites para o corpo, não há limites pra a dança, não ha limites para o ser humano diante de todas as possibilidades que a vida te apresenta. É bom quando a gente sai dos padrões e vê um professor com deficiência ensinando dança, né? Vai para o inusitado, mas é um inusitado que confirma o que a gente acredita.

Ana Pinto

Jornalista formada pela PUC-Rio e artista-pesquisadora no campo da Dança e do Teatro. Como repórter e produtora de reportagem, trabalhou nas redações dos jornais Extra / O Globo, SBT, Record e TV Globo. Atualmente, trabalha com produções artísticas e colabora com reportagens para veículos online e impressos.

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