‘O Brasil é um exímio destruidor de recursos naturais’

Um dos mais premiados jornalistas da Amazônia, Lúcio Flávio Pinto conversou com o #Colabora dias antes de anunciar o fim da carreira

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 15 • Publicada em 14 de julho de 2023 - 10:41 • Atualizada em 25 de janeiro de 2024 - 16:56

Fumaça sobe de incêndios florestais em Altamira, estado do Pará, em agosto de 2019. Foto João Laet/AFP

A fala é mansa, com frases curtas e precisas. Não há empáfia na voz, pelo contrário, pacientemente, ele explica ao jornalista do Sudeste os meandros e a complexidade das coberturas na Amazônia: “É impossível conhecer a Amazônia sendo uma especialista ocasional, vindo apenas de vez em quando. A Amazônia é tão vasta que tem regiões que ninguém conhece, ninguém cobre”. Nascido em Santarém e radicado em Belém, no Pará, Lúcio Flávio Pinto tem 73 anos, é jornalista desde 1966 e cobre a região há quase 50 anos. A quantidade de livros, 21, todos sobre a Amazônia, rivaliza com as quase duas dezenas de prêmios e perde apenas para o volume de processos, 33, movidos por personalidades locais e grupos econômicos insatisfeitos com o rigor das suas denúncias.

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Há 15 dias conversei com Lúcio Flávio sobre o seu trabalho e os desafios socioambientais da Amazônia. O foco era um artigo acadêmico, que ainda será publicado. Na ocasião ele me falou sobre os percalços que vinha enfrentando por conta da progressão do Parkinson, que pensava em parar de escrever, que estava cansado. Dias depois ele formalizou a decisão em uma carta emocionante para os seus leitores (Veja a íntegra no fim deste texto). Sem dúvida, uma perda enorme para o jornalismo e para a cobertura de uma das regiões mais ameaçadas do planeta. Lúcio Flávio Pinto é o único jornalista brasileiro a fazer parte da lista de 100 heróis da liberdade de imprensa, criada em 2014 pela ONG Repórteres Sem Fronteiras. Aí vão alguns trechos da conversa com o #Colabora.

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Conferência de Estocolmo (1972)

“Quem representou o Brasil naquele encontro foi o então Ministro do Interior, o general Costa Cavalcante. E qual foi a atitude do Brasil? Foi dizer que o país queria poluição. Se a poluição tinha sido responsável pela industrialização dos países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, nada mais justo do que o Brasil querer poluição também. Ou seja, o Brasil virou as costas para a primeira tentativa de incluir nas ações do governo e das empresas a preocupação com o meio ambiente”.

O gado da Volkswagen

 “De 1972 em diante o Brasil passou a ser um exímio destruidor de recursos naturais. E um fato exemplifica bem o que acontecia. Em 1976, um satélite da Nasa identificou um grande incêndio no sul do Pará, no município de Santana do Araguaia, que hoje é um dos mais pobres do país. E quem era o responsável pelo maior desmatamento detectado pela Nasa até aquele momento? A Volkswagen, que não estava lá produzindo automóveis, mas criando gado. O caso teve uma grande repercussão e a empresa acabou vendendo o projeto”.

O arco do desmatamento

“O arco do desmatamento é o que mais se expande na Amazônia, apesar de todos os discursos de que estamos mais preservacionistas, mais conservacionistas. O método é sempre o mesmo. O que vemos hoje em Apuí, em Lábrea, é o que vimos em Santana do Araguaia, Conceição do Araguaia e Rondonópolis. Então, a ciência não tem tido a capacidade de fazer com que tantos conhecimentos se tornem práticos. Já temos estudos suficientes mostrando que uma árvore em pé é mais rentável que uma árvore derrubada, mas ela continua a ser derrubada. Já tivemos quase trinta mil km² por ano de desmatamento, agora temos menos, mas ainda é muito. Uma coisa é derrubar 20 mil km² de floresta em uma região que tem 1% de desmatamento, como era a Amazônia em 1976. Hoje temos 17% de floresta derrubada. A conclusão é que não tem saída para a Amazônia”.

Cobertura Ambiental

“Nesses quase cinquenta anos, a cobertura ambiental da imprensa se sofisticou, ficou mais bonita, mas ela piorou. Piorou porque para cobrir a Amazônia você tem que gastar dinheiro. Vou dar um exemplo, em 1976 eu cobri a grande cheia do rio Amazonas e passei 16 dias num barco fretado. Isso custa dinheiro e as empresas jornalísticas não estão mais dispostas a investir o suficiente para que você possa dizer: ‘meninos, eu vi com meus olhos, eu estive lá’. A cobertura ficou mais bonita, com mais gráficos, imagens, mas muito mais falha”.

Internacionalização da Amazônia

“O grande problema hoje é que a Amazônia se internacionalizou, se tornou mundial, mas a cobertura não consegue acompanhar. Então, o que acontece? Quem quer que a Amazônia continue sendo destruída, sendo explorada no modelo colonial, de commodities, minério de ferro, soja, carne etc, trabalha com informações diretas, lida com os fatos primários. Qualquer funcionário médio de uma multinacional que atua na Amazônia está mais preparado para falar sobre a região do que os jornalistas”.

Balsas nas margens do rio Madeira mostram a força do garimpo ilegal na região. Foto Michael Dantas/AFP. Setembro/2022
Balsas nas margens do rio Madeira mostram a força do garimpo ilegal na região. Foto Michael Dantas/AFP. Setembro/2022

Governo Bolsonaro

Eu tenho 57 anos de jornalismo e achava que tinha visto tudo que podia ver. Mas eu vi duas coisas na Era Bolsonaro que nunca, nem nos meus piores momentos, imaginei ver. A primeira foi um dia para tocar fogo na floresta monitorado pelo Palácio do Planalto, em Brasília. Ali em Novo Progresso, que é um nome irônico, porque não é novo e nem tem progresso. Mas nunca ninguém tinha tido a audácia de dizer: ‘vamos tocar fogo hoje por tocar fogo’. E depois eu vi a foto de cento e quarenta balsas de ouro no Rio Madeira. Olha, eu chorei de desespero, nunca imaginei ver o rio Madeira, de uma ponta até a outra, lotado de balsas, que são lugares lúgubres, que têm um passivo de milhares de mortes por todo tipo de acidente e de mal feito que você possa imaginar. Eu vejo que a Amazônia cumpriu a maldição de Fiszcarraldo, do filme do Werner Herzog. Porque a irracionalidade e o absurdo se apresentam de uma forma tal que as pessoas não percebem que estamos andando para trás, que o ano que vem vai ser melhor porque o ano que passou foi pior, mas não, o próximo ano acaba sendo ainda pior”.

Perdão, leitores

Mensagem de Lúcio Flávio Pinto aos seus leitores, publicada em 8 de julho de 2023

“Acordei assustado na madrugada de hoje. Saí do sonho com uma cobrança: eu tinha errado, de forma crassa, uma nota que postei ontem no blog. Por incrível que pareça, o erro foi percebido durante o sonho. Fui praticamente despejado do sono por essa cobrança, feita no reino do inconsciente.

Como se, só assim, uma traição perpetrada pelo inconsciente, que me impediu de ler corretamente o documento no qual me baseara para escrever o post, pudesse ser corrigida: pelo mesmo inconsciente, ainda capaz de desfazer a falha cognitiva.

Eu criticara e ironizara (como fiz várias vezes, em função de atos que interpretava como dissipação de dinheiro público) a Fundação Cultural do Pará por comprar livros de uma empresa de construção, a Mais Brasil Construtora, de Ananindeua.

Na verdade, o contrato era para a “aquisição de unidade biblioteca modular, composta por mobiliário, equipamento, livros e software, dimensionado em no mínimo 100m2, composta por módulos habitáveis, não podendo ser container marítimo, a fim de atender às necessidades da Fundação Cultural do Estado do Pará”.

Eram duas horas da madrugada. Aturdido e insone, vim a este computador e escrevi esta retificação:

“Peço desculpas à Fundação Cultural do Pará, à empresa construtora e ao leitor pelo involuntário erro cometido na nota sobre os livros. O serviço contratado é relativo a estantes e não a livros. Por isso, exclui a nota, o que faço por iniciativa pessoal, já que não houve qualquer comentário a respeito, lamentando a confusão”.

Depois de refletir mais um pouco, chocado pela situação, acrescentei este post:

“Fui alertado pelos médicos: na sua progressão, o Parkinson poderia começar a atingir a minha cognição; e eu seria abalado. Esse dia chegou. Mesmo lendo e relendo o extrato do contrato da Fundação Cultural do Pará, que motivou uma nota, já cancelada, voluntariamente, li errado e só percebi o erro neste momento. Acordei subitamente, assustado, já com a constatação do erro crasso que cometera por uma leitura prejudicada, O inconsciente disparara a lucidez sobre o ato praticado, vencendo a limitação momentânea na vida consciente.

Só cancelar a nota, como fiz, não é o suficiente. Depois de anos de convivência com a doença mental, que é degenerativa e não tem cura, este foi o primeiro erro desse tipo que cometi, depois de milhares de notas que escrevi neste blog já com o diagnóstico do mal.

Sob o choque da percepção, decidi encerrar a minha atividade jornalística pública diária. Não quero cometer um novo erro desse tipo, por redução ou, em algum momento, perda da capacidade cognitiva. Poderia continuar sem mudança minha atividade, apoiado no fato, comprovado cientificamente, de que não seria um erro voluntário, mas devido à doença, sobre a qual, nessas circunstâncias, não exerço controle.

Por formação e por atavismo profissional, não posso permitir que uma eventual repetição dessa perda de cognição cause danos a quem quer que seja, inclusive a mim. É uma questão de foro íntimo, no qual o problema vai se confinar a partir de agora. O que por várias vezes tentei, sem conseguir consumar a decisão, agora se completa, para minha profunda lástima. Encaro a decisão como uma contingência impositiva, para manter coerência com 57 anos de exercício da profissão a que me dediquei integralmente desde a adolescência, sempre buscando servir aos meus leitores e às causas públicas que adotei ao longo do tempo.

O blog será dedicado, a partir de agora, à divulgação do que já escrevi e à imensa quantidade de documentos do meu arquivo, que possam ter utilidade pública. Além de prosseguir no tema mais relevante neste contexto: a cabanagem. Continuarei a acompanhar o dia a dia do Pará, da Amazônia, do Brasil e do mundo. Agora, como espectador, espectador ainda comprometido com o meu tempo, mesmo que este já não seja exatamente meu.

Muito obrigado a todos os meus leitores, de acordo ou em divergência comigo, sem os quais eu não estaria aqui, com a maior gratidão que há em mim. Espero que este blog e os demais, que procurarei continuar a alimentar, ainda mereça a sua visita, para mim sempre honrosa, estimulante e reconfortadora.

E la nave va. Porque navegar é preciso”.

Lúcio Flávio Pinto: “É impossível conhecer a Amazônia sendo uma especialista ocasional”. Foto Amazõnia Real
Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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