ODS 1
As cicatrizes emocionais dos alunos transferidos após as enchentes no Sul
Saúde mental dos estudantes preocupa professores e pais; mudança forçada provocada pelo desastre climático também impacta as famílias
Imagine que você é uma criança ou adolescente e, da noite para o dia, teve que abandonar sua casa, pertences, amigos e ir morar em outra cidade. Agora, você tem que se adaptar a uma nova rotina, estudar em uma escola diferente, conviver com pessoas que você não conhece e lidar com a saudade de tudo que era familiar. Essa é a realidade de milhares de estudantes gaúchos que foram afetados pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul.
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Em maio, Eduardo Kirsch Ribeiro, 14 anos, teve que sair às pressas de Eldorado do Sul, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre que teve 82% dos habitantes atingidos pelas inundações. O destino foi a casa dos avós maternos em Tramandaí, que fica a 128 km de distância, no Litoral Norte do Estado. Quando a família percebeu que não poderia voltar para casa tão cedo, matriculou o filho na Escola Municipal de Ensino Fundamental Marechal Castelo Branco, em Tramandaí.
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Veja o que já enviamosA adaptação de Eduardo tem sido bem difícil. “O rendimento dele na escola caiu. Eu já fui chamada cinco vezes pela direção por causa de notas e de comportamento. Essa parte é a que está sendo mais difícil para nós”, afirma Graziela Kirsch, mãe do Eduardo. Ela conta que o filho sempre foi tranquilo na escola, nunca teve problemas de relacionamento e que observa com preocupação a mudança de atitude do adolescente. Ele está recluso, não quer estudar e insiste em voltar para Eldorado do Sul, onde tem seus amigos e a antiga escola.
Na verdade, não é só Eduardo que está sofrendo. De forma abrupta, toda a família teve que se reorganizar e encarar uma nova dinâmica. Daniel Julio Rabelo Ribeiro, pai do Eduardo, não conseguiu se adaptar em Tramandaí e, quando a água baixou, voltou para Eldorado do Sul. “Está sendo difícil para mim. Não é como se a gente tivesse um projeto de ir morar na praia. Eu fui expulso de Eldorado”, declara. Desde que voltou, Daniel tem se dedicado em reorganizar a casa, assim como retomar o trabalho na Câmara Municipal de Vereadores e na sua pequena empresa de conserto de ferramentas.
Graziela segue em um apartamento alugado em Tramandaí, com Eduardo e Enzo, o caçula da família. Para ela, estar na cidade tem um significado diferente, pois está perto da mãe e pode “ganhar um colo”, como diz. Grazi e os filhos voltam para Eldorado nos finais de semana. É o momento em que ela trabalha no seu salão de festas e quando todos podem estar reunidos.
Com a família dividida entre duas cidades, a dificuldade de adaptação de Eduardo na escola e o medo de novas enchentes, Graziela e Daniel não sabem se investem em mobiliar a casa novamente e permanecer em Eldorado ou se vão tentar se estabelecer na praia. “Eu tô me sentindo bem perdida. Tô como um barco à deriva, sem saber o destino certo”, afirma.
Pais e professores atentos à saúde mental dos alunos
A incerteza sobre o futuro é um sentimento recorrente entre as pessoas que foram atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. A falta de previsibilidade potencializa a ansiedade e dificulta a adaptação à nova realidade, especialmente para crianças e adolescentes. Por isso, Maria Fernanda Hennemann, psicóloga clínica e educacional, sugere que seja aberto um espaço de diálogo com os filhos, para que eles saibam os próximos passos que serão dados, mesmo que não sejam a longo prazo.
Ela também alerta para que pais e educadores fiquem atentos às alterações de comportamento e sono. Eles podem indicar a necessidade de ajuda psicológica. “Tem que observar se aluno tem reações exageradas, se está irritado ou passivo demais. Se está negando ou se só quer falar sobre o que aconteceu”, explica Maria Fernanda.
Muitas vezes essas mudanças e dificuldades são percebidas no ambiente escolar, como é o caso de Eduardo. “A partir do momento que a gente percebeu essa instabilidade e mudança de comportamento, começamos a ver mais de perto o caso dele e decidimos chamar a mãe para conversar”, afirma Francieli Valim, diretora da Escola Marechal Castelo Branco. Ela explica que o adolescente não foi encaminhado para o serviço de psicologia escolar do Centro de Atendimento Preventivo ao Educando (Cape) porque as vagas para novos alunos já haviam sido encerradas. Mesmo assim, a equipe diretiva aconselhou a família a buscar atendimento psicológico da rede municipal de saúde ou particular.
A demanda por atendimento no Cape aumentou com a chegada das transferências escolares. Letícia Matos, diretora do Cape, explica que até o mês de julho o serviço funcionava em livre demanda, mas depois ficou com uma fila de espera de 120 alunos. Segundo ela, em 2024, o número de estudantes em atendimento chegou a 1.700. A Secretaria de Educação de Tramandaí tem convênio com 16 clínicas que atuam junto ao Cape nas especialidades: psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e equoterapia.
Os encaminhamentos acontecem por meio da equipe pedagógica da escola municipal e são direcionados aos alunos que estão com dificuldades na aprendizagem. Quando existem problemas de saúde mental que não interferem no desenvolvimento escolar, o caso é encaminhado para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Com a situação emergencial das enchentes, o Cape prestou apoio para quem chegava na cidade. “Nós abrimos uma exceção e trabalhamos no acolhimento inicial dessas famílias, já fazendo os encaminhamentos necessários dos estudantes”, explica Letícia. A diretora também informa que os novos alunos já estão dentro do planejamento do Cape para 2025.
O papel da escola no tratamento do trauma
Com uma maior frequência de desastres ambientais e a exposição a situações de violência, cada vez mais os educadores brasileiros têm que lidar com alunos que tiveram vivências traumáticas. O presidente da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, Reinaldo Nascimento, explica que nem toda experiência estressante vai virar um trauma. Mas é papel da escola auxiliar nesse momento em que a criança precisa de proteção e apoio para retomar a vida. Por isso que, segundo ele, é importante que o professor estude sobre o tema.
A Pedagogia da Emergência sugere um cronograma de atividades para serem realizadas em sala de aula que vão ajudar no acolhimento do estudante. Aliás, Reinaldo explica que a rotina e o ritmo da escola ajudam muito a passar segurança. Algo parecido com o que a psicóloga Maria Fernanda destacou um pouco antes nesta reportagem: oferecer uma certa previsibilidade para a criança ou adolescente ajuda a diminuir a ansiedade após viver algo difícil, em que ela sente que não teve controle sobre o que aconteceu.
Então, em um dia de aula na Pedagogia da Emergência, a sala estaria limpa e organizada, o educador vai saudar os alunos, percebendo cada aluno e o coletivo. Depois, ele pode ler um poema e abrir uma roda de conversa, na qual ninguém é obrigado a falar, mas existem acordos e todos podem se sentir à vontade para se expressar. Em seguida, é realizada alguma atividade corporal, uma brincadeira ou música, para ativar os sentidos e acordar o corpo. Aí o educador pode ensinar a parte teórica da aula, mas costurando com alguma vivência prática. No final, o professor lê um conto e depois se despede dos alunos, observando como cada um e o grupo estão indo embora.
Segundo Reinaldo, todos os estudantes se beneficiaram com uma rotina de estudos assim, mas, para os que viveram uma experiência estressante, “o ritmo da escola ajuda no processo de cura da criança”.
Em setembro de 2023, voluntários da Associação da Pedagogia de Emergência estiveram no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, e acolheram mais de 1000 pessoas, entre crianças, adolescentes, familiares e professores/as. Em 2024, eles voltaram ao estado e realizaram atendimentos em abrigos e escolas, além de oferecer, gratuitamente, treinamentos para pessoas interessadas na metodologia.
A Pedagogia da Emergência é uma metodologia criada em 2006 pelo professor alemão Bernd Ruf para auxiliar crianças e adolescentes que viveram experiências traumáticas. Desde então, a metodologia pedagógica alcançou mais de 80 mil crianças globalmente, com intervenções realizadas em 28 países, incluindo Quênia, Líbano, Filipinas, Equador, México, Moçambique e Turquia. Além disso, a Pedagogia de Emergência também foi aplicada em outras situações de desastres no Brasil, como em Brumadinho, Petrópolis, São Sebastião, Janaúba, Ibimirim, Boa Vista, Pacaraima e na Favela da Rocinha.
*Pauta selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca e da Fundação Itaú
Emilene Lopes é jornalista gaúcha com foco em educação, meio ambiente e cultura. Atua como repórter freelancer e lidera o projeto de jornalismo local Retratos de Guaíba, dedicado a resgatar memórias e promover o diálogo sobre a identidade e cultura dos guaibenses. Vencedora do Prêmio Paulo Freire de Jornalismo 2022, na categoria Mídias Digitais, também produziu o documentário Histórias do Cine Gomes Jardim (2019)