Quando sentiu uma picada na altura da lombar, a professora e poeta Flora Benitez não imaginava que dentro de pouco tempo viveria talvez a época mais difícil de sua vida. Difícil a ponto de esquecer até mesmo de quem ela era.
Em 2009, Flora vivia nos Estados Unidos há dez anos e se preparava para voltar ao Brasil em um mês. Ela estava com amigos em um acampamento no estado de Coneccticut, onde morava, e foi picada pelo carrapato que transmite a doença de Lyme, nome da cidade onde foi descoberta a doença. Lyme é lugar de matas e cavernas, ambiente propício à instalação do carrapato do gênero Ixodes, transmissor da bactéria da espécie espiroqueta, chamada Borrelia burgdorferi.
[g1_quote author_name=”Cristiane Soares” author_description=”Neuroinfectologista” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A recuperação da memória é um processo gradual e lento. Provavelmente a leitura do poema foi o fato que a fez perceber que estava começando a melhorar
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Veja o que já enviamosFlora já havia sido picada outras vezes e nada havia acontecido. Será que você se lembrou de um velho conhecido de nós, brasileiros? Pois é, a comparação é válida. “Esse carrapato que transmite Lyme é que nem o aedes aegypti, que se não estiver contaminado, você não pega dengue, nem chikungunya…”, explica a própria Flora.
Mas o que picou a professora nascida em Brasília há 57 anos estava contaminado e Flora voltou para o Brasil com o ferrão do inseto encravado na pele e incomodando. “Eu achava que era um cravo. Meus filhos tentavam tirar e não conseguiam, o local ficava bem vermelho, coçava, incomodava. Um amigo meu, dermatologista, receitou até pomada”, lembra Flora.
Seis meses depois de voltar dos EUA, apareceram os primeiros sintomas da doença, que de acordo com o Ministério da Saúde não é contraída no Brasil. “Eu fiz uma cirurgia dentária um pouco complexa e minha imunidade caiu”, conta Flora, e então apareceram os sintomas: fortes dores de cabeça, fraqueza muscular, febre de 40º, enrijecimento e – o pior dos quadros – confusão mental. A poeta leu tanto sobre a doença que tem na ponta da língua características da Lyme. “A doença pode ficar no seu corpo durante quatro anos sem se manifestar, mas se a sua imunidade cair, como foi no meu caso, aí não tem jeito”, explica.
A neuroinfectologista Cristiane Soares, membro da Academia Brasileira de Neurologia, explica que um dos primeiros sintomas da Lyme é justamente o surgimento de dois círculos avermelhados em torno do local da picada, mas que a doença pode evoluir para problemas de coração, nas articulações e alterações neurológicas, com possibilidade de meningite ou meningoencefalite. O tratamento, pelas explicações da médica, parece simples, principalmente se levarmos em conta as complicações do quadro de Flora Benitez. “É feito (o tratamento) com antibióticos como a ceftriaxona ou penicilina cristalina. O tempo total é de 10 dias a duas semanas”, explica Cristiane Soares.
Mas o grande problema de Flora foi justamente começar o tratamento. “Os médicos brasileiros não conhecem Lyme, ninguém sabia diagnosticar”, e ela relembra os inúmeros exames aos quais foi submetida e que não chegaram a uma conclusão. O mistério só foi resolvido quando um médico (já falecido) de Valparaízo de Goiás, cidade pobre próxima à periferia de Brasília, virou e disse para Flora, durante mais uma consulta, sem saber nada da vida da paciente: “Se você morasse nos Estados Unidos, eu diria que você está com a Doença de Lyme”. Sofia, a filha mais nova, que acompanhava a mãe, começou a chorar e contou ao médico onde Flora havia morado durante dez anos. A doença estava finalmente diagnosticada. Um exame mandado para São Paulo apenas confirmou a aposta do médico.
Só que aí a Lyme já estava adiantada e Flora Benitez tinha crises de confusão mental e perda de memória, somada às fortes dores. De repente, Flora olhava em volta sem saber onde estava. “Eu estava conversando normalmente e de uma hora para outra vinham outras imagens à minha cabeça. Eu estava com uma pessoa e de repente me via em outro lugar”, conta.
A gravidade do quadro a levou a três meses de internação em um hospital público, o de Santa Maria, cidade do Distrito Federal a 40 minutos de Brasília. Virou atração entre médicos, enfermeiros e estudantes de medicina que desconheciam a doença. “Meu filho contou que uma vez foi me visitar e não pode entrar no quarto de tanta gente curiosa lá dentro, perguntando ‘é aqui a moça que tem a doença do carrapato?’”, conta Flora, que não se lembra de boa parte do que aconteceu nesse período. “Eu não lembrava que era professora, do meu nome, de onde nasci…eu não lembrava que tinha filhos”, conta, emocionada. A filha mais velha, Fernanda, estava em uma gravidez de risco e por circunstâncias familiares precisou assumir o comando do tratamento de Flora. “É desesperador”, ela resume em uma palavra o que é, de uma hora para outra, não ser reconhecida pela própria mãe.
O “milagre” da poesia – O estado emocional da família ficou em frangalhos quando membros da equipe médica sugeriram a internação em um hospital psiquiátrico, porque a paciente perdera, por exemplo, o senso de responsabilidade e de pudor, a ponto de levantar a roupa em público. Segundo Fernanda, alguns médicos chegaram a dizer que o quadro era irreversível. A família recusou e decidiu tratá-la em casa. Foi quando o que já parecia impossível aconteceu. Flora estava na sala de espera do consultório do médico chefe da equipe – que também foi contra a internação – e as luzes da cura começaram a se acender. “Toma aí, mãe, lê esse jornal para se distrair. Meu filho conta que me disse”, diz Flora, ressaltando que naquele momento não lembrava que o rapaz era seu filho. Como ele dizia que era, ela acreditava e confiava. “Na hora que bati os olhos no jornal, dei de cara com um poema do Vicente Sá e falei: Nossa, que lindo! É do Vicente Sá! É do meu amigo esse poema aqui…”.
Entrou no consultório em estado de confusão mental, falando que estava nos Estados Unidos, mas quando olhou o filho, o achou familiar. “Eu me emocionei e comecei a chorar, pois comecei a me lembrar que tinha um filho, mas era como se eu não o visse há muitos anos”. De acordo com Flora, para o médico essa reação foi o sinal de que a paciente estava melhorando, pois até então Flora não se emocionava. Até ali, só demonstrava frieza e reclamava de dores. O médico, o neurologista Márcio Siega, foi procurado, mas não quis se manifestar, alegando que o caso de Flora aconteceu há muitos anos. “A recuperação da memória é um processo gradual e lento. Provavelmente a leitura do poema foi o fato que a fez perceber que estava começando a melhorar”, explicou, por sua vez, a neuroinfectologista Cristiane Soares. De acordo com Flora, ela não conhecia o poema (apenas o autor, Vicente Sá), mas o texto é sobre coisas que a remeteram a seu próprio passado, como o pai que não conheceu e a mãe que morreu enquanto ela vivia fora do Brasil. Quando soube, o poeta Vicente Sá, amigo há anos de Flora Benitez, ficou assustado. “Sempre soube que os poemas nos ajudam em muitos momentos. Quando estamos tristes, sem esperança, e por aí vai. Mas ajudar a recuperar a memória foi meio que muito forte. Uma prova que a poesia é boa para tudo”, comemora o autor
Sarcoma e sequelas – Embora o estado de confusão mental tenha persistido por algum tempo, Flore Benitez foi recuperando a memória aos poucos. “Naquele dia, quando cheguei em casa, me falaram que eu tinha que ver meu neto e me trouxeram minhas duas filhas, perguntando se eu lembrava delas. Foi estranho”. Eufórica, a família mostrou fotos dela com o menino, que nasceu durante o tratamento, mas Flora não se lembrava do que via nas fotografias. No entanto, reconheceu a irmã e a cunhada e se lembrou que era professora.
Um ano depois, levando vida normal, a poeta e professora foi diagnosticada com sarcoma, um tipo de câncer bastante agressivo. Diz que a médica lhe deu seis meses de vida. Estava sozinha na consulta. Voltou em pânico para a casa, mas não exatamente por causa da nova doença. “No dia que eu soube do sarcoma, fiquei com medo de voltar dirigindo para casa e perder a memória”, lembra.
Passou por uma cirurgia, extraiu o tumor e teve algumas complicações sérias nessa segunda batalha pela vida. Venceu outra vez. Com coragem, convive com o fantasma da Lyme, que pode realmente deixar sequelas, de acordo com a médica Cristiane Soares. “Eu não assisto a filmes em que há personagens que perdem a memória ou que têm confusão mental por algum motivo, não me fazem bem”, confessa. Se sua imunidade cai, as confusões metais retornam, por isso ela frisa os cuidados que toma. “Se eu fico gripada, eu não saio de casa”.
A poeta e professora diz que tanto a Lyme quanto o câncer a fizeram uma pessoa melhor. “Hoje eu tenho fé e acredito em Deus, embora não tenha religião”, conta. As duas provas de fogo melhoraram também a relação na família, segundo a filha Fernanda. “Estamos vivendo o melhor momento de nossa vida, porque conseguimos trabalhar melhor as dificuldades”, ela conta, e as duas, mãe e filha, sorriem com a certeza de que estão realmente vivendo muitas coisas boas das quais nunca se esquecerão.
Poema de Vicente Sá que Flora leu no consultório
Nomes
O nome do meu pai é Tião
Mas eu chamo ele é de pai, paizinho
O meu nome é criança
E a minha brincadeira é crescer
Ser gente grande
Pra poder andar por aí
A minha mãe…
Ela sumiu no mundo
Um dia, de tarde
O nome dela é ausência
Mas eu chamo mesmo é de saudade
(Vicente Sá, publicado no livro “Anjo Carmim”, 2004)