O harmônico som da democracia

Músicos de orquestras do Rio dizem que tamanho da 'temporada' depende do governo

Por Cátia Moraes | ODS 9 • Publicada em 13 de junho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 13 de junho de 2016 - 12:06

Ao final de “Carmina Burana” os músicos erguem os arcos dos instrumentos em sinal de protesto
Uma violonista toca com um adesivo de ‘Fora Temer’ grudado no arco de seu instrumento e chama a atenção dos fotógrafos
Uma violonista toca com um adesivo de ‘Fora Temer’ grudado no arco de seu instrumento e chama a atenção dos fotógrafos

Dos incontáveis movimentos de protesto surgidos nos últimos anos no Brasil, este é provavelmente o mais harmônico. Literalmente. Não só pelo ineditismo de juntar músicos de orquestras do Rio de Janeiro, como pelo estilo sereno dos manifestantes. Durante a manifestação, não há profusão de cartazes, punhos cerrados no ar, palavras de ordem beligerantes. Há música de qualidade, alguns momentos de ‘fora Temer’ e os arcos dos instrumentos trançando o ar ao final de ‘Carmina Burana’, não por acaso escolhido como o hino do movimento Música pela Democracia.

[g1_quote author_name=”Pedro Mielli” author_description=”Violinista da Orquestra do Teatro Municipal” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Esse movimento começou de maneira espontânea…a manifestação é apartidária, se posiciona contra um governo ilegítimo e emocionou desde o primeiro concerto, na praça São Salvador.

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 Originária do latim, ‘Carmina Burana’ significa ‘Canções do mosteiro Benediktbeuern’, com poemas e textos escritos por eruditos errantes e monges copistas por volta do século XIII. Estes últimos eram chamados de clerici vagantes ou goliardos, e costumavam deslocar-se pelas universidades europeias nascentes, assimilando-lhes o espírito mais concreto e terreno.

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 Eles produziram textos destinados ao canto, em latim e em alemão medieval, com temas como a exaltação ao jogo, ao erotismo e a condenação à Cúria Romana, que consideravam voltada apenas à busca do poder. Como diz o ‘carme’ n°. 10: “A morte agora reina sobre os prelados que não querem administrar os sacramentos sem obter recompensas (…) São ladrões, não apóstolos, e destroem a lei do Senhor”. E o carme n°. 11: “Sobre a terra nestes tempos, o dinheiro é rei absoluto (…) A venal cúria papal é cada vez mais ávida dele. Ele impera nas celas dos abades e a multidão de priores, com as suas capas negras, só a ele louva”.

 O compositor alemão Carl Orff musicou vários dos Carmina Burana com o subtítulo de “Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae”. A obra pode ser definida como uma espécie de ópera sem história ou uma ‘cantata cênica’. Estreou em junho de 1937, em Frankfurt, em pleno nazismo, representada pela roda da Fortuna, eternamente girando, trazendo alternadamente boa e má sorte. Tornou-se uma música popular, sobreviveu como rara peça de arte da Alemanha nazista a continuar prestigiada e eternizou os textos ‘profanos’, reformistas, de manuscritos da Antiguidade.

 “O Fortuna, velut Luna, statu variabilis, semper crescis aut decrescis”. (O Sorte, és como a Lua, mutável, sempre aumentas ou diminuis). Assim no Século XIII como no Brasil de 2016. Ao encamparem versos como esses, músicos oriundos de seis orquestras do Rio de Janeiro tornam-se uma espécie de novos clerici vagantes: em pouco mais de dois meses, realizam o terceiro concerto-manifestação “pela volta da democracia, a recondução da presidente afastada ao cargo e a restituição dos direitos fundamentais de um Estado democrático”, como diz um dos organizadores, o contrabaixista Cláudio Alves.

Ao final de “Carmina Burana” os músicos erguem os arcos dos instrumentos em sinal de protesto

Afinando a viola, pouco antes do início do ato na Cinelândia, na última sexta-feira, Tina Werneck, integrante da Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense (UFF), estava feliz com a participação dos colegas. “Esse movimento começou de maneira espontânea e marcou um golaço ao ser exibido nas televisões europeias e até na Al Jazzera”, diz, com a disposição de comparecer “aos próximos”. Pedro Mielli, 35 anos, violinista da Orquestra do Teatro Municipal, diz que “a manifestação é apartidária, se posiciona contra um governo ilegítimo e emocionou desde o primeiro concerto, na praça São Salvador”.

E, assim, na maior calma, os músicos vindos de diversos lugares do Rio se reúnem na escadaria da Câmara Municipal, na Cinelândia, para afinar os instrumentos. O concerto está prestes a começar, numa paz inimaginável em outras manifestações recentes, no país. O público espera o concerto no mesmo estado de espírito.

Início do ato. Um dos organizadores sobe ao alto da escadaria e anuncia o programa da noite: “Carmina Burana”, “Apesar de você” (Chico Buarque), “Pra não dizer que não falei de flores” (Geraldo Vandré), “Roda viva” (Chico Buarque) e “Mourão” (Guerra Peixe). O público vibra quando o coro de Carmina Burana entra em ação, sob a batuta do maestro Rafael Barros Castro, da Orquestra dos Solistas do Rio de Janeiro. Músicos, cantores e público na mesma sintonia.

Entre algumas composições, os músicos puxam o coro contra o Governo interino. Uma violonista toca com um adesivo de ‘Fora Temer’ grudado no arco de seu instrumento e chama a atenção de fotógrafos, amadores e profissionais. Um morador de rua assume um microfone e acompanha o coro do “Fora Temer” como pode, já que é mudo. Está completamente à vontade entre os manifestantes. Tudo, absolutamente tudo nesta manifestação, é low profile.

Antes da última composição – que se tornou o hino do Música pela Democracia -, um dos organizadores faz o público aplaudir com entusiasmo ao dizer: “Quem define a nossa ‘temporada’ é o Temer. Enquanto ele não sair, nós estaremos resistindo, lutando com a nossa música”.

E volta Carmina Burana. A Cinelândia é a própria Roda da Fortuna.

O Fortuna, Ó Sorte,
Velut Luna És como a Lua
Statu variabilis, Mutável,
Semper crescis Sempre aumentas
Aut decrescis; Ou diminuis;
Vita detestabilis A detestável vida
Nunc obdurat Ora oprime
Et tunc curat E ora cura
Ludo mentis aciem, Para brincar com a mente;
Egestatem, Miséria,
Potestatem Poder,
Dissolvit ut glaciem. Ela os funde como gelo.
Sors immanis Sorte imensa
Et inanis, E vazia,
Rota tu volubilis Tu, roda volúvel
Status malus, És má,
Vana salus Vã é a felicidade
Semper dissolubilis, Sempre dissolúvel,
Obumbrata Nebulosa
Et velata E velada
Michi quoque niteris; Também a mim contagias;
Nunc per ludum Agora por brincadeira
Dorsum nudum O dorso nu
Fero tui sceleris.  

Entrego à tua perversidade.

Sors salutis A sorte na saúde
Et virtutis E virtude
Michi nunc contraria Agora me é contrária.
Est affectus
Et defectus  

E tira

Semper in angaria. Mantendo sempre escravizado
Hac in hora Nesta hora
Sine mora Sem demora
Corde pulsum tangite; Tange a corda vibrante;
Quod per sortem Porque a sorte
Sternit fortem, Abate o forte,
Mecum omnes plangite!  

Chorai todos comigo!

Cátia Moraes

Jornalista e escritora, autora de quatro livros-reportagem, professora-oficinista sobre a escrita, devotada à arte de escrever e apaixonada, particularmente, pelo gênero que capta o que há de mais espontâneo no ser humano, em seu cotidiano: a crônica. De preferência, a que ousaria chamar de ‘crônica social’ quando a cronista flagra surpreendentes, deliciosas histórias de pessoas ‘invisíveis’ -- a si mesmas, ao mundo – e interage, aprende com elas.

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