Em 1989, o padre Ricardo Rezende era pároco de Rio Maria, no sul do Pará, onde acompanhava o drama de trabalhadores vivendo como escravos em latifúndios da região, ameaçados de morte, privados da liberdade, submetidos a condições degradantes por conta de dívidas absurdas. Trinta anos depois, na véspera do 1º de Maio de 2019, Ricardo Rezende participou com o fotógrafo João Roberto Ripper de debate na Casa Pública sobre trabalho escravo, tema a que dedicou também sua vida acadêmica – é doutor em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo no Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ – e de militância: participa, entre outras, da ONG Humanos Direitos, também voltada ao combate ao trabalho escravo.
Nesses quase 40 anos – antes de ser pároco em Rio Maria, foi agente da Comissão Pastoral da Terra em Conceição do Araguaia, também no Pará – de atuação na área, ele viu a exploração de trabalhadores em formas semelhantes à escravidão começar a a ser combatida mais efetivamente a partir de 1996 e ganhar maior escala a partir de 2003, mas sempre resistir, inclusive em formas mais sofisticadas.
“E vejo com muita preocupação, muita apreensão, o momento em que vivemos. As mudanças na legislação foram no sentido de facilitar a exploração do trabalhador. O Brasil já teve nove grupos móveis de combate ao trabalho escravo no Ministério do Trabalho, agora só são quatro. Com isso, o combate fica na dependência do apoio das superintendências regionais, que podem estar defendendo muito mais os interesses dos empregadores do que dos trabalhadores”, afirmou Rezende no debate na Casa Pública, que abriga exposição, até 10 de maio, de fotos de João Roberto Ripper sobre trabalho escravo.
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Veja o que já enviamosNa sua pesquisa sobre trabalho escravo contemporâneo, ele destaca que a nova exploração, basicamente urbana, acontece através das horas excessivas de trabalho, das condições insalubres, da água suja, da alimentação inadequada. “Nós vivemos em um tempo de muita angústia. Há uma quantidade enorme de pessoas aqui no Brasil, mas também no mundo inteiro, que vive uma angústia que as gerações anteriores não viveram. É uma geração para a qual não existe e não existirá trabalho. A fábrica que empregava 40 mil pessoas, agora emprega 5 mil – e ninguém está pensando nessas pessoas que ficaram sem trabalho, só está pensando no lucro, na produtividade, em como aproveitar mais desses 5 mil”, argumentou.
Rezende comentou que, apesar de, provavelmente não serem maioria, os escravizados na área rural – os principais retratados nas fotografias impactantes de Ripper em plantações de cana de açúcar, carvoarias e regiões agropecuárias – ainda existem. “Recentemente, pesquisa da Organização Internacional do Trabalho no Maranhão identificou escravizados por dívida, mecanismo que achávamos que tinha terminado”, disse o pesquisador. Rezende acrescentou, contudo, que os flagrantes de trabalho escravo vêm aumentando principalmente nas áreas urbanas. “Infelizmente, existe hoje em nosso país, uma superabundância de mão de obra, uma mão de obra que é muito fácil de aliciar, em função do desemprego, da pobreza, da miséria”. A última lista suja do trabalho escravo tinha 186 empregadores, inclusive marcas famosas.
No Brasil, surgem cada vez mais casos de trabalhadores imigrantes escravizados: congoleses, haitianos, chineses, bolivianas, venezuelanos. Para Rezende, um dos mecanismos para legitimar a escravidão é a desqualificação do outro “por ser estrangeiro, de outra nacionalidade, de outra etnia, de cor da pele diferente, de outra religião – este sempre foi, pelos séculos, uma das formas de legitimar a escravidão”. Por isso, as recentes crimes migratórias levam o padre e pesquisador a ficar mais pessimista. “A escravidão tende a aumentar não só no Brasil como no mundo inteiro. São 200 milhões de migrantes involuntários no mundo hoje. Gente expulsa de sua terra pelas guerras, pela fome, pelo desemprego. São vítimas fáceis para quem quer explorar o trabalho escravo”.