O ‘novo’ Velho Chico

Cena da novela “Velho Chico”, gravações no Nordeste

Historiador espera não ver retrato caricatural do Vale do São Francisco em nova novela da Globo e fala das enormes transformações na região e no rio

Por Valquiria Daher | ODS 6ODS 9 • Publicada em 7 de março de 2016 - 08:00 • Atualizada em 9 de março de 2016 - 15:16

Cena da novela “Velho Chico”, gravações no Nordeste
A navegação pelo Rio São Francisco que se tornou mais difícil após a barragem de Sobradinho
A navegação pelo Rio São Francisco que se tornou mais difícil após a barragem de Sobradinho

Suas águas mudaram de cor, retirantes deixaram de navegá-lo na busca de vida melhor no Sudeste, os peixes rarearam, dando lugar ao carneiro nos pratos, e a sociedade rural ganhou hábitos urbanos. O rio São Francisco e as terras que o rodeiam viram tantas transformações nas últimas décadas que talvez o escritor Guimarães Rosa, o poeta Carlos Drummond de Andrade e o músico Luiz Gonzaga, que os representaram em suas obras, mal pudessem reconhecê-los hoje. Outra maré de mudanças já está em curso com a polêmica transposição das águas, que deve ser concluída até o ano que vem, prevê o Ministério da Integração Nacional. Com tanta história para contar, o rio virou até novela da Globo, “Velho Chico“, que estreia no horário nobre no dia 14 de março, uma trama que atravessa décadas e tem todos aqueles componentes esperados, coronel autoritário, famílias rivais, amores proibidos, mas também a promessa de mostrar um pouco da complexidade da região em tempos atuais.

“Vemos de forma positiva que a vida das pessoas da região chegue ao horário nobre. Mas recusamos, de forma crítica e veemente, os estereótipos de sotaques forçados, de exotismo cultural, de passadismo que idealiza paisagens e práticas culturais que já não existem. O Vale do São Francisco se modernizou e se complexificou como qualquer outro espaço brasileiro contemporâneo, dentro de suas especificidades, e há uma grande expectativa de que a ficção televisiva entenda isso”, comenta o historiador Elson Rabelo, professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que participa nesta segunda (07/03) do seminário “Vozes do Velho Chico“, no Museu do Amanhã, entre 13h30 e 18h, junto com moradores da região, empresários e as atrizes Camila Pitanga e Lucy Alves, que estão no elenco da história dirigida por Luiz Fernando Carvalho e criada por Benedito Ruy Barbosa, com texto de Edmara Barbosa e Bruno Barbosa.

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No campo, aumentaram os conflitos por causa de terras situadas próximas ao rio, entre assentamentos sem-terra, comunidades tradicionais quilombolas e indígenas, instituições do Estado e grandes proprietários. O Vale do São Francisco é um furacão, o rio é seu olho

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Rabelo faz uma reflexão dessa modernização da região a partir de imagens produzidas nos anos 1970. O historiador analisa, por exemplo, as fotos de Euvaldo Macedo Filho (1952-1982), que registrou o cotidiano das populações ribeirinhas em inúmeras viagens, por terra, mas principalmente pelo rio a partir de Juazeiro, no submédio São Francisco, até o oeste baiano, conta o professor. “Euvaldo escrevia anotações em forma de poesias, além de fotografar paisagens e o cotidiano de inúmeros tripulantes e viajantes nos barcos, famílias inteiras dormindo em redes, no convés, desembarcando e se integrando às feiras e festas populares”. Até a sua morte, aos 30 anos, Euvaldo trabalhou intensamente, deixando 10 mil imagens, muitas em negativos não revelados, e dois curta-metragens em super-8.

Mudança de hábito
De lá para cá, as transformações foram avassaladoras e em todos os setores. Muitas positivas. Agricultura irrigada, exportação de frutas, melhoria da infraestrutura, mais serviços de saúde e educação. “Alguns economistas e sociólogos estão considerando que a dinâmica aqui é ‘rurbana’, porque muita gente transita entre rural e urbano, para morar, estudar e trabalhar, enquanto o próprio rural, que é territorialmente muito grande, é modernizado, as pessoas consomem artigos e serviços urbanos e as trocas culturais são muitas: os vinhos, uvas, mangas, hortaliças, carne, tudo vêm do campo, que é um espaço bastante atrativo por suas festas tradicionais – hoje “estilizadas” – e por seus cenários de rio, ilhas, dunas, cachoeiras”, explica o historiador.
O rio também perdeu o status de principal via de transporte para o Sudeste – foi substituído por rodovias. As barragens ao longo de seu curso (Três Marias, Sobradinho, Paulo Afonso, depois, Xingó) dificultaram a navegação, mas reduziram as enchentes nas cidades. Por outro lado, impossibilitaram a piracema, o que desencadeou outra mudança cultural. “Consome-se pouco peixe da região, hoje, sem falar que consumimos mais carneiro e não bode, como antigamente, porque o carneiro é mais aceito no mercado”.

Coronelismo
Tão presente na ficção, o coronelismo – que o historiador faz questão de destacar que estava e está em vários locais do país e não só no Nordeste ou no Vale do São Francisco – persiste reformulado e mais sofisticado, com mudanças já a partir de 1930. “Desde então, criou-se uma situação que não é a cultura violenta e discricionária que nos acostumamos a pensar sobre o coronelismo, pois essas elites políticas tradicionais têm de barganhar com a presença ostensiva do Estado e com os novos grupos sociais, como aqueles empreendedores atraídos pela agricultura irrigada”.

Movimentos sociais
Os movimentos sociais também se fortaleceram na região. Há trabalhadores rurais organizados, movimentos feministas, LGBTT, negros, sem-terra, atingidos por barragens, quilombolas e indígenas, todos com larga participação da juventude, ressalta o historiador. “No campo, aumentaram, de maneira particularmente organizada, os conflitos por causa de terras situadas próximas ao rio, entre assentamentos sem-terra, comunidades tradicionais quilombolas e indígenas, instituições do Estado e grandes proprietários. O Vale do São Francisco é um furacão, o rio é seu olho”.

Bolsa família
Por outro lado, programas de transferência de renda como o Bolsa Família e o Luz para Todos, colaboraram com a modernização no meio rural e urbano, fixando os sertanejos na região e, por exemplo, empoderando as mulheres. “É a mãe de família que administra a principal renda da casa, o que muda as relações sociais, culturais e econômicas, se não imediatamente, pelo menos a médio prazo”.

A transposição
Criticado por ambientalistas, defendido por outros setores da sociedade, o Projeto de integração do São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional, conhecido como transposição pela maioria dos brasileiros, deve estar concluído até o próximo ano, segundo o governo federal. “O São Francisco não é mais o mesmo, e não há mais tempo sequer de se posicionar contra ou a favor da transposição. A reflexão é: o que fazer com ela, hoje?”, resume Rabelo. Para o professor, levar água a locais que sofrem com a seca em Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte não combate os principais problemas econômicos da região. “Hoje, o que se fala é em conviver com o semiárido, com suas secas, entender sua flora e fauna nativas e suas possibilidades de cultivo, produção e consumo”, acrescenta.

Os ‘donos’ da água
Com a transposição, ressalta o professor, o São Francisco vai percorrer um terço do Brasil – oito estados e, tecnicamente, o projeto parece ser viável. Mas uma das grandes questões é como será realizada a gestão da água. “Grandes proprietários? Grandes empresários? Os governos federal ou estadual? O medo é que a água dessa obra seja usada como arma de barganha em determinados contextos políticos. Ao longo das áreas de canais, as comunidades tradicionais estão se movimentando, seja porque estão sendo afetadas pelas obras, seja porque estão preocupadas com seu acesso à água, num futuro próximo”, avalia Rabelo.

Impacto ambiental
As consequências da transposição para o meio ambiente sempre foram preocupação. Para Rabelo, não há garantia de que o rio dê vazão à transposição por uma série de fatores como nascentes deficitárias e assoreamento em resultado do desmatamento nas cidades ribeirinhas. Outro temor é que a retirada de água afete a produção de energia em usinas, como o complexo de Paulo Afonso. Mesmo o combate à seca é visto com ressalvas: “Há um certo consenso, entre estudiosos, e por parte do próprio Comitê da Bacia do rio São Francisco, de que o rio não pode ser ser alvo da expectativa de que irá ser objeto de uma ação eficaz e definitiva para o combate à seca, em uma área de grandes proporções como sertão nordestino. Se a transposição compensa os danos ambientais, só seu impacto poderá dizer com mais clareza, mas, se rumo das práticas seguir uma lógica imediatista de combate à seca, sem dialogar melhor com as variáveis socioambientais, os estragos serão ainda maiores”.

Valquiria Daher

Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.

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Um comentário em “O ‘novo’ Velho Chico

  1. Elson Rabelo disse:

    Prezados,

    Aqui é o Professor Elson Rabelo.

    Gostaria de pedir, por gentileza, que colocassem o crédito da imagem de Euvaldo Macedo Filho, por uma questão de direito autoral.

    Grato,

    Elson.

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