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Quantos crimes estão escondidos na história da sua família?

ODS 16ODS 5 • Publicada em 25 de janeiro de 2023 - 11:03 • Atualizada em 30 de janeiro de 2023 - 18:30

De ídolo da torcida brasileira ao spotlight de um escândalo de repercussão mundial. Além de ser (mais) uma história sórdida e horrenda, o caso de Daniel Alves aciona outros gatilhos — retratos do patriarcado, da misoginia e da “certeza” da impunidade. Após 14 minutos de crime sexual, a jovem de 23 anos imediatamente, talvez antes mesmo de elaborar a violência que acabara de sofrer, conseguiu caminhar até o segurança da boate de luxo naquela madrugada, pedir ajuda, protocolar e registrar a denúncia. O que me fez refletir sobre tantos outros casos de estupro subnotificados de dezenas de milhares de outras mulheres que tiveram seus corpos invadidos e violentados. E pior: por um pai, um tio, um irmão, um primo, um amigo “que já é de casa”, um pastor, um professor, um treinador. A interrogativa que deixo é: quantos crimes estão escondidos na história da sua família?

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A pedagogia do silenciamento é construída apesar de casos midiáticos como o de Daniel Alves. Estamos falando de um jogador de futebol, milionário, que estava de passagem na Espanha desde dezembro para o velório da sogra. Porém, corpos de mulheres, meninas e crianças são historicamente utilizados para a satisfação de um patriarcado que não é contestado. A objetificação é relativizada, abafada pela noção de poder. Compram-se silêncios, amordaçam vítimas. E a história se perpetua por gerações. Os traumas também.

Uma memória recente que tenho é do Dia da Escuta, evento realizado pela Festa Literária das Periferias (FLUP) em dezembro do ano passado. Idealizado por Audrey Pulvar, jornalista negra e francesa, a ideia foi organizar uma roda de partilha e escuta sobre memórias, cicatrizes e processos de cura de mulheres que foram violentadas. Lembro-me de convidar algumas amigas para irem comigo à programação comigo, mas todas negaram. “Um evento para ouvir histórias de dor, de abuso, não é muito a minha, desculpe”. Fui sozinha.

O evento mal começou e eu já estava soluçando no discurso de abertura. Não porque tenho a sensibilidade aflorada, mas porque estava revoltada com relatos — de anos atrás — nunca compartilhados. Eu vi e ouvi recortes de dores de mulheres filhas de pais pedófilos e mães omissas. Algumas que tiveram que ouvir que eram culpadas pelos abusos sofridos, outras que foram desacreditadas quando, enfim, tiveram a coragem de falar. Eu tive a dimensão do quanto a memória dos abusos é viva e capaz de nos esfaquear. “Se eu fechar os olhos, eu sinto o cheiro, o calor do corpo dele”, confessou uma das participantes que, por punição, ficou 30 dias no quarto sentindo vergonha e solidão por um crime sexual sofrido na ainda primeira infância.

Naquele dia, comecei a anotar todos os dados que me aterrorizaram, sem me preocupar com a fonte. Foi aí que, novamente, me vi diante de uma realidade infernal do que é ser mulher no Brasil. Em Porto Alegre (RS), 1% das crianças são abusadas com menos de um ano de idade. Abusos de tamanha crueldade que destroem a vagina, destroem o ânus dos bebês. Na França, menos de 1% dos abusadores são condenados. 18 estupros incestuais acontecem por hora; ⅙ (um sexto) das crianças sofrem estupros incestuais. “A questão de ter um corpo preto, faz com as coisas — a impunidade — fiquem mais complicadas”.

Pausa.

Se sua indignação é seletiva, quero pontuar que, no fim das contas, ela é inválida. O recente escândalo de Daniel Alves gerou um engajamento digital avassalador de milhões de compartilhamentos, tweets e manchetes de portais de notícias. Mas estamos falando de uma figura pública, lateral-direito e futebolista brasileiro. Fora dos holofotes da fama, a pergunta ainda pode ser respondida: quantos crimes existem nos bastidores do álbum da nossa família? Quantos abusos são silenciados, ameaçados ou enterrados desde a ancestralidade? Não refiro-me, aqui e agora, apenas a crimes sexuais, mas quaisquer violações outras que nos provocam indignação externa, mas já foram, facilmente, abafadas da porta para dentro. Abusos, estupros, violência doméstica, pequenos, médios ou grandes furtos, roubos, falsificação de documentos, tráfico de drogas, racismo, homofobia ou ameaças de morte? E quanto aos crimes não previstos nos artigos do Código Penal, como agressões verbais e morais, pressões religiosas e omissões diante de injustiças, especialmente contra mulheres?

Se esta coluna fosse um questionário de múltiplas escolhas, talvez você que me lê teria marcado um (x) em, ao menos, uma das violações exemplificadas. Fato é que precisamos de uma reflexão estrutural que impulsione uma incidência política para frear a perpetuação desse ciclo. Políticas públicas — desenhada por mulheres — em âmbito nacional para minorias e uma reeducação da sociedade para ressignificar as masculinidades, romper com o patriarcado para além da punição de agressores e criminosos.

Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), estado de onde escrevo, dados abertos mostram que há uma crescente de casos de feminicídio nos últimos anos. Só em 2021, foram notificados 78; 85 em 2021; e 97 em 2022. Em relação às tentativas de feminicídio, os números mais que triplicam: 270, 264 e 265 respectivamente em cada ano. Tudo isso após oito anos da promulgação da Lei 13.104, de 9 de março de 2015, conhecida como Lei do Feminicídio. Embora seja uma conquista recente, é preocupante que a realidade esteja na contramão da expectativa de redução estatística de violências.

O episódio de Daniel Alves não tem nada de novo. Não podemos esquecer de outros futebolistas brasileiros acusados e condenados por escândalos envolvendo crimes sexuais graves. Hoje, minha solidariedade, lamento e empatia se estende a todas as mulheres brasileiras que sofrem em silêncio, enquanto seus agressores desfrutam do seu anonimato. Às mulheres que ainda revivem suas memórias de abusos, que possuem marcas no corpo e na alma, e que nunca conseguiram denunciar — ou desabafar. A essas, que são muitas, deixo o meu encorajamento à denúncia, ainda que anônima, a busca por redes e grupos de apoio para se proteger de zonas de risco e, por fim, a insistente prática do autoacolhimento, seja individual, terapêutico ou institucional. Estamos juntas!

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