Dia desses eu conversava com o Matheus sobre o tempo passando. Contava pra ele sobre uma época em que eu estava sempre “impecável”: maquiadíssima, batonzão, cabelo sem um arrepio de frizz e sempre com um look pensado, montado. Era quase mais um turno de trabalho. Hoje, uns bons anos depois, continuo bastante chegada a umas roupas extravagantes, amo maquiagem e depois de ter ficado careca, acho que sou do team Sansão: meu cabelo é, sem dúvida, um dos meus pontos fortes. Mas não tenho mais a obsessão que tinha por estar sempre montada, “perfeita”, até para ir à esquina.
Olhando a vida pelo retrovisor, hoje sei exatamente por que eu tentava tanto estar na minha melhor aparência possível. Eu estava presa em um relacionamento extremamente abusivo, em que minha autoestima era drenada diariamente. Tudo era errado: minhas roupas, minha maneira de escrever, meu comportamento, minhas amizades, minha vontade de estudar, absolutamente tudo.
Todos os meus desejos, prazeres e aspirações para a vida eram “vontade de aparecer” e eu devia “saber meu lugar”. E assim vivi muitos anos, me encolhendo para caber naquela forma de pessoa que eu jamais seria, ou queria ser. Mas uma coisa eu tinha, e era só minha: a maneira como eu me apresentava todos os dias ao sair de casa- nem que fosse para ir à padaria. É óbvio que naquela altura eu não sabia disso, mas eu usava maquiagem, roupas e tudo mais como armadura, pra proteger o pouco que me restava de amor-próprio e autoestima.
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Veja o que já enviamosE falando disso, eu disse: “ai, envelhecer é bom demais!”, pensando em como é reconfortante enxergar essa versão passada de mim, ver que ela tentou se proteger como pôde e tá tudo certo, estamos aqui, eu e ela. Mas o Matheus, generoso que é, me respondeu: “Envelhecer é bom, mas teria sido melhor não ter vivido certos traumas, né amor?” E isso alugou um triplex na minha cabeça. Claro que sim.
Os anos recentes da história do mundo têm mostrado pra gente de formas cada vez mais duras que o passar dos anos não traz, necessariamente, mais sabedoria ou nos torna pessoas melhores. Não que haja um limite etário para ser fascista, racista, machista ou, no mínimo, uma pessoa escrota. Mas é fato que para falar da ditadura militar com saudosismo ou de maneira a relativizá-la, é preciso ter passado por ela ali. Claro que tem gente ruim o suficiente pra sentir “saudade do que não viveu” e pedir a volta de um regime de opressão de quando nem tinha nascido. Mas aí é um grau de distorção da realidade sobre o qual eu nem consigo comentar.
Óbvio que esse assunto não é novidade para a psicologia, a psicanálise, a psiquiatria e outros tantos psis. Mas eu que sou leiga (apesar dos meus passeios aos psis), fiquei encafifada, pensando no quanto da nossa história vem de uma resposta inconsciente a nossos traumas. O quanto da nossa “maturidade” com o passar dos anos vem de ter andado por caminhos duros e ter sobrevivido a eles? O quanto da minha vaidade “despreocupada” de hoje vem de ter usado uma máscara de corretivo, blush e rímel?
E pensei um pouco mais longe. Cruz credo fazer competição de desgraça, mas habitando o mundo como mulheres, a gente sempre tem a experiência guiada por algum trauma, alguma ameaça. Nosso GPS é guiado pelas ruas em que é seguro passar a pé em determinada hora; nosso meio de transporte de escolha varia de acordo com o quanto sentimos medo de algum trajeto; nossa maneira de vestir também pode estar de acordo com o quão “arriscado” pode ser usar certa peça, e, como eu, muitas mulheres têm respostas inconscientes a abusos que sofreram e que foram sendo incorporadas a seu comportamento. É muito doido que tanto da nossa vida tenha como régua o medo que sentimos, apenas por sermos mulheres, com agravantes como a pobreza, a etnia, a identidade de gênero, a sexualidade, o endereço, e outros fatores que fazem a gente o que é, cada uma de nós.
Eu ainda acho que envelhecer é bom demais. Não estou interessada na alternativa: ir de arrasta pra cima, bater a caçoleta, esticar as canelas… morrer. Tampouco estou interessada na pedagogia do sofrimento. Nessa eu fecho 100% com o Krenak, quando ele diz que “Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina. (…) Essa ideia, eu não tenho nenhuma simpatia com ela. Se for pra sofrer, eu não quero aprender nada.”
Eu também prefiro a burrice eterna a ter que sofrer para ser ensinada. Claro que não é uma escolha, ninguém escolhe sofrimento porque quer – a menos que seja fetiche, mas isso é outro papo. Mas faço questão de não romantizar a dor, e achar que venha algo de bom dela. Eu quero mais é que a gente seja acolhida pela zona de conforto – que não se chama assim à toa – sem precisar tomar lambada da vida.
Mas faço também questão de olhar para a Júlia do passado, com seu batom vermelhíssimo, com gentileza e – embora eu deteste o uso contemporâneo da palavra – e com gratidão, ao escolher se saio de casa maquiada ou não.