Eu sempre achei besta essa discussão de “quem paga a conta” num barzinho, no restaurante, e onde quer que seja. Mas de tempos em tempos, aparece alguma mulher, em alguma rede social, mostrando prints de conversas com homens com quem saíram, mostrando o cara cobrando por coisas absurdas, como a gasolina do carro no dia do encontro, ou mesmo pedindo reembolso da “parte dela” da conta de um restaurante que ele na hora “fez questão” de pagar enquanto achava que estava “no páreo” – de que, exatamente, só sendo homem pra conseguir explicar.
Leu essa? Na pandemia. três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia
Porque piadas e memes à parte, todos esses casos ocorrem, obviamente, depois de o cara ser rejeitado, de o lance não ir pra frente, de não haver um próximo date. Como se tivessem feito um investimento que deu prejuízo. Como se fôssemos mercadorias que, uma vez “pagas”, devessem “entregar” (para usar um termo da moda) o que era esperado. E como se fosse uma petulância ousar dizer não a um “macho provedor”.
Eu nem sei por onde começar a dizer de quantas maneiras e em quantos níveis isso está errado, mas em situações inofensivas, folgo em saber que mulheres têm conseguido pagar para se livrar de homens desta estirpe. Porque no proverbial e derradeiro final das contas, a gente vem pagando a conta há muito tempo, e da maneira mais cara possível, com nossos corpos e vidas.
Receba as colunas de Júlia Pessôa no seu e-mail
Veja o que já enviamosSaíram essa semana os números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, indicando aumento de todos os tipos de violência contra meninas e mulheres: violência doméstica (9,8%), ameaças (16,5%), perseguição/stalking (34,5%), violência psicológica (33,8%) e estupro (6,5%), além do feminicídio (0,8%).
Enquanto escrevo essa coluna, algumas mulheres foram estupradas, de acordo com o levantamento. Os dados mostram que a cada seis minutos foi registrado um caso de estupro no país. E piora ainda mais: a violência sexual vem aumentando desde 2020 — quando eram 63 mil casos. Em 2023, foram 84 mil ocorrências. Considerando a série história da pesquisa, entre 2011 e 2023, o número de estupros cresceu 91%. Entre as vítimas desse crime, 88% são do sexo feminino e 62% são meninas menores de 13 anos.
E não adianta argumentar que “o Brasil é um país violento, quem mais morre são os homens, blablablá”. Primeiro porque não é uma competição. Segundo, porque mesmo quando há uma queda significativa nas mortes violentas, como foi registrado em 2023, houve, na contramão, um aumento no número de feminicídios.
Em 2023, o país teve 46.328 mortes violentas intencionais, uma redução de 3,4% em relação a 2022. Quando a gente adiciona gênero à fórmula, foram 1.467 mulheres mortas por esta razão, o maior registro desde a publicação da lei que tipifica o crime de feminicídio, em 2015. E não faz diferença onde esta mulher vive, num grande centro urbano violento ou na mais amigável vizinhança de interior, porque a ameaça está em casa, e é um homem. O assassino foi o parceiro em 63% dos casos, o ex-parceiro em 21,2% e um familiar em 8,7% dos registros. Surpreendendo zero pessoas, o estudo mostrou, ainda, que as mulheres negras são ainda mais vitimadas pela violência, já que elas representam 52% das mulheres estupradas e 64% das vítimas de feminicídio.
A conta está muito alta, e seguimos pagando: pela masculinidade frágil, pela cultura machista que nos enxerga como propriedade, como cuidadoras, como empregadas, como descartáveis, como objetos sexuais, como centro de reabilitação, enfim, como existentes apenas para servir aos homens. Pagamos com a vida pelos motivos mais absolutamente fúteis.
(Pausa para meu choque ao pesquisar a data e constatar a informação seguinte). A tese de “legítima defesa da honra”, instrumento judicial para a impunidade de agressores e assassinos de mulheres, caiu somente em AGOSTO DE 2023. Até lá, a justificativa poderia ser usada para um homem que matou sua companheira por ter sido traído ou apenas por desconfiar disso. O chifre de um corno – ou a suspeita de sua existência – , até pouquíssimo tempo, valia muito mais do que a vida de uma mulher.
Pagamos pela afirmação da masculinidade em seu ridículo. Em dias de jogos de futebol, há um aumento de 26% em registros policiais de violência contra a mulher, segundo a pesquisa “Violência Contra Mulheres e o Futebol”, idealizada pelo Instituto Avon e encomendada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A conta recai sobre nós, mesmo diante de um jogo dominado por homens: no campo, nas transmissões, nas mesas de bar, nas diretorias de clube, nas decisões políticas acerca do esporte, nos patrocínios, em tudo. São homens os atletas milionários que violentam mulheres. Ainda assim, em dia de partida, a violência contra as mulheres aumenta. E não, não importa se o agressor é corintiano, ou torce para o diabo que o carregue.
Ser mulher no Brasil é torcer e não se calar – sobretudo em dias de futebol – por um futuro em que sejamos, todas, inadimplentes. Porque não podemos seguir pagando a conta.