No território indígena Tuxá Campos, lugar de homem é na cozinha

Há séculos, homens da etnia têm a responsabilidade de preparar os alimentos, enquanto as mulheres cuidam das crianças e limpam a casa. Pelas mãos deles, pratos típicos da tradição cultural e religiosa são perpetuados

Por Adriana Amâncio | ODS 5 • Publicada em 4 de setembro de 2023 - 09:06 • Atualizada em 19 de novembro de 2023 - 20:13

Cleber na cozinha: ele diz que gosta de ser ousado e não poupa especiarias no preparo dos tradicionais pratos da culinária Tuxá (Foto: Arquivo pessoal)

Quando pensamos em comida, é comum vir à nossa memória a imagem de avós, mães ou tias que preparam pratos saborosos. Essa relação é tão forte que deu origem ao termo “comida de vó”. Para além das memórias afetivas, estatísticas mostram que as mulheres a partir de 14 anos gastam 9,6 horas a mais que os homens com afazeres domésticos, indicou o estudo Outras Formas de Trabalho, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua de 2022. Entre alguns povos indígenas, a realidade é diferente, ao menos quando a tarefa é cozinhar. Um exemplo é a etnia indígena Tuxá Campos, formada por 76 famílias, que vivem às margens do rio São Francisco, em Itacuruba, no sertão pernambucano. Lá quem prepara os alimentos são os homens. Esse arranjo social é tão forte que o lema da aldeia é: “Aqui, as mulheres só cozinham se os homens estiverem doentes.”

A importância desse meu trabalho é manter a alimentação saudável e não deixar morrer a tradição alimentar do meu povo

Elineu Campos
Indígena tuxá

Jociclébio Ferreira, conhecido como Cleber Tuxá, de 39 anos, primo da cacique Evani Tuxá – isso mesmo, a aldeia é liderada por uma mulher – explica que desde os seus ancestrais, os homens cozinham, e  o ofício é passado de pai para filho. E como essa tradição começou? No passado, os roçados eram localizados a centenas de quilômetros da aldeia, Cleber explica. Por isso, os homens e seus filhos do sexo masculino viajavam e passavam cerca de três a seis meses cultivando e colhendo alimentos. Distantes das mulheres, eles cozinhavam para matar a fome. “Foi assim, que aos 8 anos, eu aprendi a cozinhar com o meu pai. Fazia feijão, arroz, carne de caça tipo capivara, tatu peba”, relembra.

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O que era uma prática nas viagens se tornou uma norma da aldeia. As plantações ficaram mais próximas de casa, mas os homens continuaram a conciliar as atividades da roça com o preparo das refeições. Cleber cresceu, casou-se, teve filhos e seguiu no comando do fogão, preparando as refeições de toda família. Nos dias de eventos na aldeia, que costumam reunir até 40 pessoas, ele também vai para a cozinha, sem medo da responsabilidade de alimentar um grande número de pessoas. 

Mesa posta: hora de a família saborear os pratos que Cleber Tuxá preparou ( Foto: Arquivo pessoal)
Mesa posta: hora de a família saborear os pratos que Cleber Tuxá preparou ( Foto: Arquivo pessoal)

Outra lógica na divisão de tarefas

A antropóloga Jurema Machado de Andrade Souza, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, (UFRB), afirma que esse arranjo mostra que entre os indígenas a concepção de divisão do trabalho não se aplica. “Para os indígenas, as atividades que fazem a vida acontecer são complementares. Essa lógica de divisão sexual é ocidental, branca e europeia”, explica a antropóloga: “Essa forma de definir isso é coisa de mulher, isso é coisa de homem também não se aplica às aldeias. As atividades de cuidado são importantes, e eles as executam de modo complementar.”

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Historicamente, a divisão sexual do trabalho nos padrões ocidentais segue critérios de gênero e valor atribuídos à atividade. Os serviços desenvolvidos no espaço doméstico são considerados de menor valor e, portanto, ficaram relegados às mulheres. 

Entre os indígenas, explica Jurema, o valor dos espaços de trabalho segue outra orientação. Ela alerta que é importante observar quais os valores estão agregados àquele lugar de trabalho. “Um bom exemplo é que, em uma determinada etnia, as mulheres podem estar circunscritas ao fogão, e esse lugar ser um espaço de poder onde são tomadas decisões de interesse da comunidade, onde se decide a luta pela terra, onde são contadas, preservadas e repassadas histórias”, pontua.

Para a professora, é preciso retirar a perspectiva ocidental ao olhar para os povos indígenas: “para os Tuxás, não há inversão de papéis. Afinal, quem disse que cozinhar é coisa de mulher? Por exemplo, em alguns povos indígenas amazônicos quem descansa após o parto são os homens, com base em outra concepção do corpo”.

E, de fato, os Tuxás veem com naturalidade a tradição culinária dos homens. Do outro lado da linha, Cleber cheio de empolgação, enumera os pratos sobre os quais tem domínio no preparo. “Olhe, eu faço tapioca, beiju, sendo que o beiju a gente fazia nos tempos das casas de farinha, agora, fazemos só a tapioca. Bode guisado, peixe tucunaré, piranha, curimatã, tilápia… Eu preparo tudo”, orgulha-se. 

Quando perguntamos qual a marca da sua culinária, ele responde rapidamente: “Gosto de ser ousado! No preparo do peixe, uso hortelã, manjericão, várias folhas batidas no liquidificador. Antes de fazer qualquer carne, eu refogo o alho e a cebola e fica bem gostoso. Aqui, na aldeia, já tem vários adolescentes homens que aprenderam a cozinhar para manter a tradição”, conta. Para o povo Tuxá, o alimento, além do aspecto nutricional, representa tradição e religiosidade. 

Segundo Jurema, ter o controle desde o cultivo até o preparo dos alimentos, mesmo sendo uma função exercida por homens ou mulheres, para os indígenas é uma atividade que pode revelar poder. Por essa razão, explica ela, o fato de as mulheres indígenas serem maioria nas cozinha não reflete submissão ou desvalorização. 

“Não quero dizer que são sociedades ideais. É claro que há problemas de gênero, de machismo. Mas a partir da minha experiência com as etnias que acompanhei na região Nordeste, seja fazendo pesquisa ou em uma atuação política, é que, com um olhar apressado, muitos poderiam dizer que o fato das mulheres serem maioria nas cozinhas das aldeias indica subjugação. Não é. Isso depende dos contextos. Por outro lado, eu vi mulheres mais presentes na luta pela terra nessa região” , conclui.

Alimento saudável e tradição

Elineu Campos, de 43 anos, é outro cozinheiro da aldeia Tuxá. Durante dois dias da semana, ele trabalha como agente de trânsito em Paulo Afonso, cidade a 126 km da aldeia, localizada no estado da Bahia. A sua folga dura oito dias. “Quando estou em casa, eu acordo às 7 horas, faço o café da manhã e às 8 horas, começo a fazer o almoço. A minha esposa arruma as meninas e as leva para a escola e, quando volta, limpa a casa. Às 11h30, meio-dia, o almoço já está pronto”, explica.

Elineu conta que, mesmo quando está no trabalho, deixa comida preparada em quantidade suficiente para as refeições da esposa, Gerlane Ferreira, de 41 anos, e das filhas, que têm 7 e 4 anos. Ele, assim como os demais cozinheiros da aldeia, aprendeu com o pai, aos 10 anos de idade, a lidar com as panelas.

O agente de trânsito fala do seu tempero com orgulho: “Eu considero que a alma da comida é o tempero, por isso, refogo tudo antes de temperar com alho, cebola, coentro, tomate. Esse é o meu segredo e tem dado certo, a minha esposa adora a minha comida. O meu baião de dois, ela come e lambe até o prato”, conta o indígena que enumera outras especialidades: a tradicional carne de bode, o feijão de corda e feijão de arranca, também conhecido como feijão mulatinho. Às vezes, conta ele, os colegas de trabalho fazem uma vaquinha e compram ingredientes para que ele prepare o almoço. “Meus colegas agora me chamam de Masterchef”. 

Como sua esposa assume a limpeza da casa e os cuidados com os filhos, Elineu considera fácil o trabalho na cozinha. “A importância desse meu trabalho é manter a alimentação saudável e não deixar morrer a tradição alimentar do meu povo”, afirma, admitindo que, se precisasse acumular trabalho e as outras atividades domésticas além da cozinha como fazem tantas mulheres, seria bem mais complicado..

Joseane de Barros Souza, de 34 anos, mulher indígena Tuxá, mãe de três filhos, avalia que é bastante importante os homens assumirem o fogão na aldeia. “É uma forma de manter a tradição dos alimentos do nosso povo, mas também de livrar as mulheres um pouco do trabalho. Nem só as mulheres têm que cozinhar. Eu acho ótimo que eles cozinhem”, avalia. 

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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