A reunião das agricultoras estava animada e produtiva, até que começou a chover forte. Foi um alvoroço na sala da Sempreviva Organização Feminista (SOF), onde elas estavam, e as mulheres já não conseguiam mais prestar muita atenção ao que estava sendo debatido. É que todas tinham deixado a roupa no varal antes de irem para a reunião. E sabiam que teriam trabalho em dobro quando chegassem em casa.
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Segundo o último censo agropecuário, feito em 2017, as mulheres comandam 18,9% dos estabelecimentos de agricultura familiar no país, atividade que domina 77% dos estabelecimentos agrícolas brasileiros e é a base da economia de 90% dos municípios com até 20 mil habitantes. A cena acima, contada por Miriam Nobre, agrônoma, integrante da SOF e militante da Marcha Mundial das Mulheres, no entanto, serve para ilustrar um dos muitos desafios que essas mulheres enfrentam: a dupla jornada.
“Fazemos reuniões com homens, e eu nunca vi um deles preocupado com a roupa no varal. Tomar consciência dessa enorme quantidade de trabalho, de disponibilidade emocional que as mulheres têm para que a vida funcione, é muito importante”, disse Miriam Nobre.
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Veja o que já enviamosO fato de serem obrigadas a realizar multitarefas embute um outro desafio para as mulheres agricultoras, este talvez ainda maior, que é a invisibilidade de seu trabalho. O governo federal ajudou nos dois primeiros mandatos do presidente Lula e no primeiro mandato da presidente Dilma, mas Michel Temer e Jair Bolsonaro extinguiram muitos dos programas que foram pensados para ajudar a agricultura familiar e, por consequência, a mulher do campo.
Hoje a situação está melhor, mas ainda há muito a ser feito para valorizar esse trabalho.
Assim como na cidade, no campo persiste uma divisão sexual do trabalho, separado entre o trabalho que produz dinheiro, em sua maioria exercido pelos homens, e o trabalho reprodutivo, tarefas domésticas e de cuidado, feito pelas mulheres. No trabalho rural as funções se confundem, pois o cuidado com hortas e quintais, exercido pelas mulheres, é entendido como trabalho doméstico, embora produza capital.
“Eu brinco, dizendo que as mulheres têm sempre um vaso em cima da geladeira: quando vendem uma galinha ou uma verdura, um ovo caipira, elas põem dinheiro no vaso. Daqui a pouco, o filho chega e fala que o chinelo arrebentou. Aí ela tira dinheiro do vaso e dá para ele comprar o chinelo, ou quando a filha diz que está precisando de um caderno novo, a mesma coisa. Quando chega no final do mês, o vaso está vazio e ela não tem noção da movimentação econômica que fez”, explica Elizabeth Cardoso, chefe da assessoria de participação social e diversidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
O fenômeno pode ser explicado por conta, justamente, da pouca visibilidade do trabalho feminino no campo. Elizabeth Cardoso lembra que a agricultura familiar acirra essa questão:
“No campo e na cidade a situação é semelhante, já que tanto o trabalho doméstico quanto o do cuidado com crianças e idosos não é valorizado enquanto trabalho. Mas na agricultura familiar isso é um pouco pior porque o trabalho produtivo das mulheres é confundido com o trabalho doméstico e ele é invisibilizado ainda mais. Um exemplo disso são os quintais”.
Um olhar mais cuidadoso
O censo sobre a agricultura familiar mostra que as mulheres do campo são responsáveis por 48% do valor da produção de café e banana nas culturas permanentes; por 80% do valor de produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% da produção do feijão, entre outras nas culturas temporárias. Como são também as cuidadoras da família, elas exercem uma função especial na hora de escolher as sementes, fugindo ao padrão de mercado, que busca as mais produtivas e baratas. Este cuidado no cultivo das espécies é responsável pela preservação da biodiversidade e dos saberes tradicionais.
“O fato de a produção das mulheres estar muito ligada ao cuidado com a alimentação é o que vai preservar essas variedades. Se hoje ainda temos tantas opções de milho, feijão, é porque as mulheres foram guardando, porque gostavam mais desse, aquele filho comia melhor”, pontua Elizabeth Cardoso.
Uma forma alternativa de vida
Foi a possibilidade de produzir o próprio alimento que fez a agricultora do Movimento Sem Terra (MST) Nivalda Alves, de 52 anos, que vive no assentamento Mário Lago, em Ribeirão Preto, querer voltar para o campo.
“Eu já conhecia a história de quem tem um pedaço de chão para morar, que é não faltar um pão na mesa, como acontece quando se vive em comunidades na cidade. No campo a gente tem sempre uma banana para comer, um limão para fazer um suco, uma verdura, um legume”, disse ela.
Nivalda cresceu em um assentamento na Bahia e foi para Ribeirão Preto, em 1994, com três filhos e o marido que buscava melhores empregos como pedreiro. Começou a trabalhar como diarista em três turnos para somar com o salário do marido. Mas a vida no campo sempre lhe pareceu ser melhor, sinônimo de viver com fartura, sem necessidade de pagar pelo alimento. Quando soube do assentamento, decidiu se mudar:
“Voltei para o meu sonho, que era viver com fartura de alimento, produzir o alimento para minha própria família. Saber o que se está comendo e o que se está pondo na mesa para nossos filhos, isso não tem preço”, disse Nivalda.
Esse sentimento se repete com Luciana Cristina Alves, de 60 anos, agricultora que tem uma pequena propriedade em Ribeirão Preto, onde começou a plantar por prazer. Luciana faz parte das chamadas neo-rurais, movimento que tem crescido nos últimos anos.
Os neo-rurais estão em busca de uma forma alternativa de vida, sobretudo pensando no bem estar e na alimentação de qualidade. Abandonam seus empregos, apartamentos e vida urbana e buscam um pedaço de terra para começar a trabalhar na agricultura ou na criação de animais. Entre os neo rurais, as mulheres são maioria, como Luciana Alves, formada em Educação Física e mãe de três filhos, que comprou um sítio para passar os fins de semana e encontrou nele a possibilidade de trabalhar com a terra, paixão e sustento.
No início, quando plantava de forma convencional, utilizando adubos químicos e agrotóxicos, Luciana viu de perto os malefícios do uso dos venenos na alimentação de seus filhos.
“Produzir um alimento que tem que esperar para comer? Pensei: não é o que eu quero. Abandonamos todos os agrotóxicos e começamos a plantar como antigamente: as hortas eram sem veneno, sem adubo, sem nada, só no esterco. E assim começamos a produzir”, explica Luciana.
Hoje, somente ela e o marido trabalham na propriedade de 4,8 hectares e vivem apenas da comercialização dos produtos orgânicos, de hortaliças a frutas e legumes. Mas são exceção entre os agricultores, já que a maioria ainda usa os agrotóxicos.
A valorização dos produtos orgânicos é fenômeno quase recente, de uma década e meia atrás, segundo Luciana.
“O orgânico não tinha essa valorização, era taxado como um produto muito caro, feio, os consumidores achavam que, para ser orgânico, tinha que ser feio, meio podre”, relembra.
Ajuda pela união
Além de todos os problemas já citados aqui, a invisibilidade do trabalho de produção de alimentos dos pequenos agricultores, sobretudo das produções orgânicas ou em sistemas agroecológicos, dificulta a precificação e compra. Nivalda Alves conta que outra de suas lutas é a busca de segurança financeira das mulheres a partir do trabalho no campo.
“Para mim, um dos maiores desafios é poder gerar renda nesse assentamento e ver essas mulheres felizes”, desabafa.
Historicamente, o trabalho da agricultura era apenas feminino, segundo Nivalda. No entanto, com a possibilidade de renda, os homens passaram a assumir o negócio e elas acabam saindo para cuidar da casa e da família. Esse é um dos motivos da invisibilidade e da dificuldade de entendimento da produção de alimento como trabalho por parte das próprias mulheres.
Algumas estratégias têm sido pensadas para mudar esse cenário. As Cadernetas Agroecológicas, um instrumento pedagógico criado pela Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), é um exemplo, já que ajudam as mulheres a entenderem a própria produção feita nos quintais como trabalho produtivo. Hoje já se tornaram política pública.
“Na caderneta, elas vão anotando tudo o que elas produziram, tudo o que elas colhem, tudo o que elas consomem”, conta Elizabeth Cardoso.
Segundo Elizabeth, antes de fazerem esse trabalho, agentes da ANA perguntavam às mulheres quantos reais elas achavam que tiravam do quintal ou das hortas. O valor que muitas atribuíam ao ganho anual era o equivalente ao que produziam por mês.
Como num círculo nada virtuoso, as próprias mulheres acabam assumindo esse desmérito de seu trabalho no campo, o que leva à desvalorização por parte do mercado, da sociedade. Nivalda lembra que essa desvalorização é sentida na pele:
“Temos um grupo que luta por isso, a Cooperativa Mãos na Terra (Comater) que tem o objetivo de unir, fortalecer e empoderar mulheres, construírem lutas dentro do assentamento e fora dele, participando de chamadas públicas para políticas públicas e se fortalecendo em conjunto”, disse.
A Comater está implantando um projeto com 42 mulheres, fornecendo assistência técnica e os insumos, irrigação, sementes e mudas de árvores nativas e frutíferas. Foi criada há 11 anos, por mulheres que não se sentiam representadas em uma associação de agricultores e decidiram abrir um espaço em que pudessem falar e ser ouvidas. Mesmo assim, ainda enfrentam muitas barreiras.
“Na última chamada pública da qual participei, eram nove participantes representando nove associações. Só tinha eu de mulher”, conta Nivalda.
Há outras iniciativas sociais que buscam fortalecer o papel feminino no campo. A Marcha das Margaridas, por exemplo, que no ano passado fez uma manifestação com cerca de cem mil mulheres em Brasília, tem abrangência nacional. Criada em 2000, a Marcha foi resultado da união de diferentes sindicatos e federações que buscam centralizar as demandas das “mulheres do campo, da floresta e das águas”, como se definem.
A Marcha realiza trabalhos em todas as regiões do Brasil com metodologias de formação das mulheres. Ela leva o nome Margarida em homenagem a Margarida Maria Alves, líder sindical de trabalhadores rurais, defensora dos direitos humanos e direito das mulheres rurais, assassinada em 1983 na Paraíba, onde morava e atuava, a mando de latifundiários locais.
Margarida defendia direitos trabalhistas ainda ausentes para trabalhadores rurais, como contratação por carteira assinada, educação para filhos de agricultores e o direito de pequenos agricultores produzirem em suas terras.
A Rede de Apoio de Mulheres Agroflorestoras (Rama), criada em 2021, também é nacional e ajuda as mulheres produtoras a se livrarem de outro mal que as ronda no campo: a violência doméstica.
“A violência doméstica é uma praga que está inserida em toda a sociedade, independente de raça, nível social”, conta Nivalda, também vítima.
As mulheres do polo da Borborema, no agreste da Paraíba, têm outra associação, esta com o lema: “Energia renovável sim, mas não assim”. Isto porque, na lista dos desafios para a agricultura familiar, Elizabeth Cardoso cita também os grandes projetos que ameaçam os pequenos produtores, como mineração, latifúndios, grandes parques eólicos, que mesmo sendo uma iniciativa de energia sustentável impactam as comunidades. As mulheres do polo da Borborema, associação recente, defende que as mulheres e comunidades locais devem ser incluídas nesses projetos.
Politicas públicas, a solução?
Criado em 2000 no governo de Fernando Henrique Cardoso, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) é o responsável pela elaboração e implementação de políticas voltadas à agricultura familiar no Brasil, incluindo as mulheres nesse contexto. Desde 2003, no primeiro mandato do governo Lula, foi criado um programa de organização de mulheres rurais para pensar em políticas específicas para elas.
“O olhar era voltado para a área do agronegócio, regido pelo Ministério da Agricultura, prestigiando a monocultura, o maquinário pesado, o agrotóxico, as sementes transgênicas, os adubos químicos, e considerando a agricultura familiar um atraso”, disse Elizabeth Cardoso.
Sabe-se, no entanto, que é o oposto disso: a agricultura familiar valoriza a biodiversidade, tem cuidado com a terra, respeita o meio ambiente.
“A agricultura familiar produz com diversidade, usa o esterco da vaca para adubar a horta, guarda as sementes crioulas para plantar na próxima safra. E há um envolvimento muito grande das mulheres nessa produção. Precisamos reconhecer isto, que as mulheres são as maiores produtoras de alimento, não só no Brasil, como em todo o mundo, sobretudo para o autoconsumo”, disse a assessora do MDA.
Elizabeth Cardoso comemora os avanços, mas alerta para o fato de que ainda há um caminho longo a percorrer:
“Tem políticas voltadas especificamente para as mulheres, mas ainda numa condição de muita desigualdade, porque há pouco recurso”, disse ela.
Atualmente, o Ministério do Desenvolvimento Agrário está em processo de retomada do trabalho que havia sido interrompido desde 2016. Nesse processo, as mulheres estão ganhando mais espaço.
Foi criada uma subsecretaria das mulheres para tratar da questão das mulheres rurais de maneira transversal e para que possa ter relação com todas as secretarias finalísticas (agricultura familiar, território, quilombolas e povos tradicionais), em que se criam os programas e onde as políticas chegam à população. Hoje, o MDA conta com políticas de assistência técnica para mulheres (ATER Mulher), Fomento mulher (crédito para empreendedorismo), PRONAF para mulheres (política de crédito), programa dos Quintais Produtivos (incentivo para o manejo dos quintais como espaço produtivo), entre outros.
Apesar disso, Elizabeth Cardoso entende que ainda é difícil, para a maioria das mulheres, ter acesso ao crédito.
“Geralmente quem tem essa autonomia de pegar um crédito são os homens, então, se você não faz uma política diferencial para as mulheres, as mulheres ficam de fora, e é extremamente injusto a gente não considerar as mulheres como trabalhadoras na agricultura”, disse ela.