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Falhei com você, Angela Davis: quero Daniel Alves na cadeia

"Crimes de violência de gênero em geral, e especificamente violência sexual contra mulheres, desafiam meu antipunitivismo"

ODS 16ODS 5 • Publicada em 5 de março de 2024 - 09:04 • Atualizada em 7 de março de 2024 - 21:31

Ainda bem que, na minha condição de apenas humana, tenho exigido cada vez menos coerência de mim mesma. A gente vai amadurecendo e percebendo que nem tudo é “pão, pão, queijo, queijo”, embora na gastronomia eu jamais vá questionar o absolutismo desta dupla. Já na vida, flexibilizar é preciso.

O bolsonarismo deixou, além de um legado podre de destruição de instituições, programas sociais e conquistas estabelecidas, uma cicatriz perene em nós, que nos opomos contundentemente a ele. A eles. E embora talvez a gente nunca mais vá enxergar os parentes que batem continência ao “Capitão” do mesmo jeito, nem sempre deixamos de amá-los (às vezes, sim, e tá tudo certo). É uma piada histórica nos meus círculos o fato de eu não comer feijão, principalmente porque amo alguns preparos: baião de dois, feijão tropeiro… Como disse, não dá pra ser coerente o tempo todo, ainda que às vezes isso deixe um sabor de se fazer careta – seja por bolsonarismo ou o tipo errado de feijão.

Leu essa? Para quem queria desenhado: ‘todo homem é um estuprador em potencial’

Desde que fui vivenciando e entendendo o feminismo, venho compreendendo que ele é indissociável de outras lentes de ser ver o mundo. Não faz sentido um feminismo que não pense em questões de classe social, que não aborde raça, que não pense na maternidade, no mercado de trabalho, e tantas outros prismas pelos quais devemos ver as lutas femininas e a desigualdade de gênero. Nada tem um único aspecto. Ou, como elaboraria muito melhor Audre Lorde, uma das pensadoras e ativistas mais instigantes do feminismo negro, “não existe hierarquia de opressão”. Tudo acontece junto.

Dito isto, qualquer pessoa que se interesse em ler e/ou saber sobre o feminismo, com mais ou menos profundidade, se deparará com a obra genial de Angela Davis, uma das maiores ativistas dos direitos civis do mundo, além de acadêmica, escritora e feminista negra. Uma das bandeiras de Davis, com a qual aceno a cabeça em concordância mesmo enquanto estou digitando essas palavras, é o antipunitivismo, ou abolicionismo. Para ela, a prisão de criminosos atende, sim, a um apelo coletivo por “justiça”, mas não contribui para uma transformação radical das estruturas de sociedades, sobretudo as que são como a brasileira, que mata e pune mais pretos, mulheres, indígenas e a população LGBTQIA+. O que o punitivismo muda neste cenário? Concordo com Angela, nada. E, no fundo, o que todo mundo com alguma sensatez quer é que as violações tipificadas como crimes deixem de acontecer. Assino embaixo.

Daniel Alves no julgamento por estupro em Madri (Foto: Jordi Borras / Pool / AFP)
Daniel Alves no julgamento por estupro em Madri (Foto: Jordi Borras / Pool / AFP)

Mas ainda bem que fiz uma extensa defesa da incoerência ao começar a escrever. Crimes de violência de gênero em geral, e especificamente violência sexual contra mulheres, desafiam meu antipunitivismo e me fazem uma discípula de araque de Angela Davis. Um bom exemplo, só pra citar o mais recente caso midiático, foi o caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves, condenado a 4 anos e meio de prisão por estuprar uma mulher de 23 anos no banheiro de uma boate na Espanha, em dezembro de 2022.

Todo o desenrolar do caso foi um show de horrores, com celebridades, futeboleiros-parça e a opinião pública questionando a veracidade da denúncia da vítima (vejam qualquer seção de comentários sobre o assunto), mudanças levianas nos depoimentos de Daniel Alves, e o absurdo de a mãe do ex-jogador revelar a identidade da mulher violada, que NUNCA havia se identificado. Foi revoltante e de dar nojo ver que Neymar pagou para o amigo Daniel uma indenização de R$ 800 mil para a vítima, que reduzia (e reduziu!) a pena, em caso de condenação. No sistema jurídico espanhol, essa multa recebe o nome de “atenuante de reparação de dano causado”. Atenuante para quem? Para que?

Na violência contra as mulheres, principalmente a sexual, a vida da vítima é devassada: sua índole, as roupas que vestia, com quem estava, o que consumia, onde estava… “Será que aconteceu mesmo?” Mesmo com todas as provas e os louváveis procedimentos da casa noturna para que a vítima pudesse denunciar o estupro neste episódio de Daniel Alves, não falta quem ouse questionar uma mulher que foi estuprada. Ficamos em choque com o estupro coletivo de uma brasileira na Índia, mas vivemos no segundo país mais perigoso do mundo para as mulheres, de acordo com o índice World Population Review.

E quanto aos estupradores? Aqueles que tanta gente argumenta que terão “a vida arruinada” pela mulher que teve coragem de denunciar? Seguem por aí, como Robinho, que poucos dias depois da condenação de Daniel Alves, estava em um churrasco no Centro de Treinamento Rei Pelé, do Santos – que negou ter havido tido convite ou participação do jogador na confraternização. Robinho foi condenado a nove anos de prisão por estupro coletivo pela Justiça da Itália, e deve ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) do Brasil em 2024. A corte definirá se o ex-atleta vai cumprir a pena por aqui.

Por essas e outras, eu abdico de minha coerência e de minha nobreza de espírito. E peço as mais sinceras desculpas à Angela Davis. Porque confesso que, em casos como estes, embora eu deseje, de fato, justiça e transformação das estruturas que legitimam essa violência assustadora… sinto um desejo profundo por punição, talvez até vingança. Quero Daniel Alves na cadeia.

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