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Meu primeiro amigo. Ou a turma do Marceu

O parceiro da vida inteira, que, jornalista genial, marcou a própria trajetória pela generosidade, lealdade e amor pelos seus

ODS 17 • Publicada em 3 de outubro de 2025 - 16:30 • Atualizada em 3 de outubro de 2025 - 17:49

De branco, na primeira fila, na cerimônia de formatura na UFF, em 1986, com o delegado Ivan Vasques. Foto arquivo pessoal

Naquele março de 1982, o Flamengo do Zico, recém-campeão do mundo, rivalizava em importância com o começo da universidade, desembarque na antessala da vida adulta. Na turma que se olhava curiosa e acanhada, o menino com cabelos indígenas, permitia-se no máximo sorrisos leves, o olhar sempre baixo, jeito entre o triste e o pacato. Calçava o mesmo tênis que, ao longo da vida, só variou a cor. Afável, aceitou a abordagem do colega ainda mais jovem, que, ao citar o rubro-negro, pavimentou, pela paixão comum, a conexão inicial.

Leu essa? A reportagem especial sobre Belo Monte, de Marceu Vieira e Marizilda Cruppe

Ali, logo no primeiro dia da odisseia quadrienal no inesquecível casarão rosa da Lara Vilela, em Niterói, fiquei amigo do Marceu. O jovem de Morro Agudo que, pela distância, exilou a Baixada Fluminense nos fins de semana para morar numa república no Ingá, começava ali, no Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF, trajetória de dignidade, generosidade e coerência únicas. Ao conjunto de qualidades, juntou-se o imenso talento para o ofício de fanáticos que escolhemos.

Desde sempre, escrevia poesias e, no Iacs, as expunha em panfletos mimeografados no mural do pátio. Trocava as obras semanalmente, e todo mundo aguardava o dia de ler as novas – especialmente as estudantes, que se embeveciam com as palavras precisas, lindas, sem nada fora do lugar. Todas se achavam em algum verso, materializando noites de suspiros e cobiça em torno do poeta da faculdade.

Nas aulas, Marceu brilhava, empilhando notas 10. Todos, da matrícula 182 (o primeiro semestre daquele ano), aprendemos o jornalismo graças a um conjunto iluminado de professores – mas ele nasceu sabendo aquilo tudo! Ficou famoso, a ponto de nos tornarmos conhecidos como “a turma do Marceu”. Orgulho eterno de ostentar o epíteto.

No sexto período, tivemos disciplina decisiva na nossa formação: Técnica de Redação de Jornal Diário. Na primeira aula, o professor, Muniz Sodré (um dos grandes intelectuais da comunicação no Brasil), explicou a estrutura do texto jornalístico, tirou dúvidas e, no fim, sapecou o dever de casa: traduzir em 30 linhas, nos parâmetros ensinados, o Gênesis – sim, o primeiro livro da Bíblia!

Foi uma devastação. Quase todo mundo ficou abaixo da média, 6, uns poucos conseguiram notas medianas – e Marceu tirou 10. Entregou o lide (o primeiro parágrafo, que resume a história, o famoso “o quê, quando, onde, como e por que”) impecável e continuou sem erros pelo resto do texto. Parecia mágica.

A faculdade tem o condão de forjar amizades, algumas eternas, outras pontuais, todas inesquecíveis. É fase libertária, de encontros improváveis, temperados pela tolerância e o interesse na interação mais desarmada. Na minha, teve, além do Marceu, a Cristiane, a Valéria, a Verônica, o Ney, o Batata, a Cristina, a Letícia, a Marília… Alguns se afastaram por caprichos do destino, mas uns poucos se mantiveram próximos pela vida afora. Tenho a sorte de há mais de quatro décadas, integrar grupo fiel, consolidado no inesquecível casarão rosa.

O convite da formatura na UFF: gravata-borboleta. Reprodução

Obviamente, ele fechou aqueles quatro anos como o melhor aluno, sem jamais derrapar na vaidade nem na arrogância. Foi, claro, escolhido orador da formatura que ocupou o teatro da reitoria da UFF, na noite da sexta-feira, 17 de janeiro de 1986. E daria notícia. Nas escolhas para o evento, Marceu defendeu que nossa turma tivesse como patrono o protagonista do fato jornalístico daquele ano, 1985.

O Brasil vivia o ocaso da ditadura militar, marcada por alguns acontecimentos explosivos, entre eles a investigação do assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, ocorrido quatro anos antes. A investigação, que envolvia agentes do governo como o chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), general Newton Cruz, ficou a cargo do delegado Ivan Vasques, famoso por usar gravatas-borboleta. Foi ele o convidado para ser patrono daqueles jovens jornalistas.

O policial aceitou e todos nós usamos adereço como o dele durante a solenidade. Marceu fez discurso magistral, para inaugurar a nova fase de nossas vidas. Mas a surpresa viria no dia seguinte: o finado Jornal do Brasil cobriu a formatura e nossa foto saiu na primeira página! Estamos lá, estampando os sorrisos da inocente alegria que emoldura os inícios de jornada.

(Num desdobramento surpreendente, o fotógrafo daquela noite, Dilmar Cavalher, casou-se, tempos depois, com uma das formandas, Cristiane Costa. Da história de amor, nasceu a linda Ana Clara.)

No sempre hostil mercado jornalístico, Marceu saiu da universidade contratado pela Tribuna da Imprensa, que vivia derradeiro suspiro de brilhantismo, mas sempre à beira do precipício orçamentário. Sob a chefia do lendário Tarso de Castro, foi trabalhar no Tribuna Bis, o caderno de cultura, onde começou sua coleção de reportagens memoráveis.

Em seguida, os dois integraram o grupo de fundadores d’O Nacional, tentativa de jornal progressista que, como sempre, durou pouco. Mas deu tempo de Marceu assinar, por exemplo, perfil de Cid Moreira, então apresentador “eterno” do Jornal Nacional, que garantiu acreditar em todos os textos lidos na bancada, mesmo os da época da censura. Virou, no título, o “Velhinho de Taubaté”, referência à personagem criada por Luis Fernando Verissimo, “a última pessoa que acredita no governo”.

Ele passou pelas redações mais importantes do Rio, até encontrar a felicidade onde toda a nossa geração sonhou trabalhar: o Jornal do Brasil. No mítico prédio da Avenida Brasil 500, estivemos juntos na Editoria de Cidade. Marceu ainda ficou por muitos anos, tornou-se editor de Política, mas sem abrir mão da atitude cativante que multiplicou amigos e fãs. Nas noites de sexta-feira, quando os então pujantes jornais adiantavam suas edições dominicais até as profundezas da madrugada de sábado, ele costumava pausar o trabalho para tocar violão. O recital juntava gente, e semeava inveja em redações mais sisudas e caretas.

A música, aliás, de hobby virou atividade permanente, em parcerias com bambas como Tuninho Galante, Teresa Cristina, Nilze Carvalho, Luís Flávio Alcofra, Ney Conceição, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Ernesto Pires, Lefê Almeida e Paulo Aragão. Ao todo, compôs mais de 120 canções, que apresentou em shows concorridos na Lapa. Participou também do renascimento do bairro boêmio, sem negligenciar o jornalismo.

Pela via musical, conheceu outro grande amor, Alfredinho (1944-2019), o espetacular dono do Bip Bip, bar pequeno e gigante de Copacabana. Numa identificação profunda, definia-se “filho e pai” do amigo, que sempre fez questão de homenagear. Integrou também a constelação de músicos que iluminava as rodas do lugar, ícone cultural do Rio.

Difícil, aliás, ter existido alguém mais carioca do que o iguaçuano Marceu. Numa mesa do agora renascido Mercadinho São José, ele participou da fundação do Imprensa que eu Gamo, bloco dos jornalistas da cidade. Assinou, na agremiação e em várias outras do Carnaval de rua, sambas-enredo maravilhosos, cantados por multidões foliãs. Foi mangueirense bissexto – apesar de celebrar a manifestação, não se entusiasmava pela coleção de rigores (e neuroses) das escolas de samba. Era da alegria mais despojada sem freio nem amarras.

Sua derradeira fase nas redações dedicou-se a outro parceiro de vida, Ancelmo Gois, “nós por ele, ele por nós”, no bordão rimado que criou de brincadeira. Marceu foi alicerce da coluna de notas mais importante da história d’O Globo, a partir de 2001. Junto com o titular, construiu estilo surpreendente, ultracarioca, para, como explica o próprio Ancelmo, incluir no cardápio das notícias um Rio até então invisibilizado. “Escrevia com uma leveza linda”, resumiu o chefe, que, sergipano, o chamava de “irmão carioca”.

Num dos últimos encontros com amigos, em São Paulo: doença em segredo. Foto arquivo pessoal

Na fase final no jornal, assumiu a editoria de esportes, para comandar a cobertura da Copa do Mundo de 2014. Seu trabalho cuidadoso e incansável salvou O Globo de constrangimentos que seriam históricos, entre vários méritos. Não deve ter existido editor mais querido por sua equipe. Defendeu os comandados nas situações mais hostis e complexas, em novos episódios da lealdade pétrea. Tornaram-se todos cúmplices incondicionais dele.

Marceu Vieira, meu primeiro amigo, foi o melhor jornalista de toda a minha geração. Como Zico no futebol e Martinho da Vila no samba, fez o trabalho parecer algo fácil, como se todo mundo conseguisse realizá-lo naquele padrão impossível.

Mas tal qualidade é limitadora para descrever alguém que transformou a bondade em prática cotidiana, a confiança em atitude permanente, a parceria em cativante prioridade, a poesia em escolha para a vida. Bastava conhecê-lo para se afeiçoar definitivamente. Suave, sereno e alegre, multiplicou afetos, amores e paixões no trabalho, no samba, nos encontros e jornadas de sua existência.

Não mudou nem para encarar a finitude. Diagnosticado, escondeu das centenas de amigos a doença que acabaria por levá-lo. Para desespero de todos nós, não queria incomodar, nunca quis. Em setembro de 2024, estive com Marceu em São Paulo, onde passou a viver na derradeira etapa profissional, como roteirista do “Conversa com o Bial”, da TV Globo. Sorrindo, revelou ter parado de fumar, algo na conta do milagre para os amigos. Deu o esperançoso tom de “resolvi cuidar da saúde”, para disfarçar o mal que encarava.

Em dezembro do mesmo ano, nos encontramos novamente, no almoço de fim de ano do Ancelmo. Num galeto no Leblon, lembramos histórias velhas e recentes, listamos projetos e desejos, compartilhamos o encanto por filhos e netos, brindamos, celebramos as mais de quatro décadas de amizade. Combinamos outros encontros, mas a rotina, mais uma vez, impôs-se como inimiga eficaz.

Dia 15 de setembro, trocamos mensagens num grupo que reúne ex-integrantes da coluna onde trabalhamos juntos por vários anos (eu, novamente, testemunha privilegiada do assombroso talento para o ofício do jornalismo). “O chefe é fofo”, escreveu, num bordão criado por ele, referindo-se ao aniversário do Ancelmo. Exatamente às 15h07, a mensagem derradeira.

Há poucos dias, circulou a notícia de que estava intubado, em quadro irreversível. Cercado da família em paz resignada – os filhos, Maria, Mateus e Vitória; Madalena e Simone, as ex-mulheres –, Marceu Vieira se foi, aos 63 anos. O velório, na Associação Brasileira de Imprensa, reuniu gerações de amigos e colegas, a compartilhar a paixão admirada por ele.

Como observou uma das presentes, Márcia Vieira (a “prima”, como chamava), ele odiaria estar no centro das atenções. Mas a “turma do Marceu” agora reúne centenas de admiradores, unidos na devoção devida a quem dedicou a vida ao permanente exercício da generosidade.

Obrigado por tudo, por tanto, meu primeiro amigo.

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Homenagem no jogo Flamengo x Cruzeiro: paixão intensa. Reprodução

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