“Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte”.
Luís Vaz de Camões (1524-1580)
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Veja o que já enviamosO engenho e a arte de fato ajudaram Luís de Camões a espalhar por toda a parte os feitos heroicos dos navegadores e do povo de Portugal, conforme prometera nestes versos da segunda estrofe do primeiro canto (são dez) de Os Lusíadas, sua grande obra épica. Junto com os feitos e as memórias, espalhou também a língua portuguesa, hoje a quinta mais falada no mundo, a primeira no Hemisfério Sul e a quinta mais usada na internet. De acordo com o Observatório da Língua Portuguesa, ela é utilizada por 261 milhões de pessoas e o Brasil, com 205,5 milhões de habitantes, é responsável por mais de 78% dos falantes.
[g1_quote author_name=”Evanildo Bechara” author_description=”Gramático” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se tivéssemos a educação como elemento de primeira necessidade, o Brasil estaria em outro patamar de civilização.
[/g1_quote]Apesar de todas as credenciais, o português não é uma das línguas oficiais da ONU – árabe, “chinês” (vários dialetos, sendo mandarim o principal), espanhol, francês, inglês e russo). Uma das razões é que Portugal e Brasil têm vivido quase às turras sobre o idioma, com regras diferentes. As diversas tentativas de consenso convergiram para o Acordo Ortográfico de 1990, adotado em 2009 no Brasil e em Portugal, com diferentes períodos de adaptação (três anos no primeiro, seis no segundo). Com exceção de Angola e Moçambique, ele foi ratificado pelos demais membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Está em vigor.
Mas a adoção das normas comuns provoca turbulências. Do alto de seus 87 anos, o gramático Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, um franco defensor do instrumento, proclama: “Uma reforma ortográfica não é para a geração que a faz”, prevendo mais calmaria quando a poeira assentar. Já o pesquisador Rui Miguel Duarte, do Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Lisboa, fala de um “caos ortográfico” e classifica a escrita resultante do acordo de 1990 como “acordês”, ou “mixordês”.
[g1_quote author_name=”Ana Paula Tavares” author_description=”Poeta angolana” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Grafar uma palavra com uma letra a mais ou a menos não vai resolver os problemas do português em Angola, como as dificuldades do ensino e a falta de leitura, que são as questões reais.
[/g1_quote]Os portugueses se referem mesmo a um falar “brasileiro”, mais pausado e cadenciado do que a forma rápida e abrupta que se tornou característica do falar português, com as vogais átonas negligenciadas a ponto de mal serem pronunciadas, o que “encolhe” palavras. Bechara conta uma passagem de um professor português que veio trabalhar no Brasil e não entendia por que seus alunos achavam que ele se referia ao planeta quando ditava a palavra “pelotão”. Com a quase completa omissão da vogal átona “e”, a palavra soava realmente como Plutão.
O curioso é que, segundo Evanildo Bechara, o português cadenciado no Brasil guarda mais semelhança com a língua de Camões que a forma empregada hoje em Portugal. Ele explica que o falar trazido pelos portugueses, no século XVI, ficou de certa forma protegido no Brasil da evolução que o idioma experimentou em Portugal nos séculos XVII e XVIII, com a intensificação da sílaba tônica.
E diz que o verso decassílabo “E se vires que pode merecer-te”, do soneto de Camões “Alma minha gentil que te partiste”, passou a ser lido em Portugal como um septassílabo – “Irs/ v’res/ que/ po/ de/ m’re/ cer/ te” (a última sílaba não conta). O que, no dizer de Bechara, levou renomados autores do século XIX, como Antônio Feliciano de Castilho, a classificar Camões como mau poeta, por pretender escrever decassílabos, quando na verdade os versos tinham apenas sete sílabas.
Para dar outro exemplo da proximidade dos textos escritos pelo poeta com o português do Brasil, ele lembra o verso “Cantando espalharei por toda parte”, em que Camões usa o gerúndio, comum em nosso país e muito mais raro hoje em Portugal. Provavelmente, um autor português mais moderno preferiria a forma “A cantar espalharei por toda parte”.
Poemas e decassílabos à parte, o fato é que o Acordo Ortográfico provoca distorções em Portugal, conforme aponta o professor Rui Miguel Duarte. Um dos problemas são os dispositivos que tratam das consoantes mudas. “Quando precedem um “t”, “ç” ou “c”, as letras “c” e “p” passam a ser escritas apenas se forem pronunciadas como consoantes: ação em vez de acção, ótimo em lugar de óptimo”. Nesses casos deixam de ser escritas por não serem pronunciadas, mesmo em Portugal. ”Em todos estes casos, quando a letra é lida como consoante, mantém-se também na escrita: pacto não passa a ser escrito pato”.
Isto provoca confusão. Segundo Duarte, o dispositivo vem contaminando de grafias típicas brasileiras a escrita e a fala de Portugal, levando a incorreções. Um deles é colocar consoantes onde nunca existiram, como por exemplo em “portáctil”, erro crasso. Ou a tirá-las de onde nunca deveriam sair. Protologia, explica Duarte, é a ciência das primeiras coisas, antônimo de escatologia, ramo da teologia que trata das coisas dos últimos tempos. Mas há clínicas em Portugal que agora se identificam como de “protologia”, quando queriam significar “proctologia”, especialidade médica que trata do cólon, do reto e do ânus. O professor citou ainda textos da Euronews em que se escreveu “adetos” (em vez de adeptos) e da RTP onde se lia “ténicos” em vez de técnicos, numa infeliz interpretação daquele dispositivo do Acordo Ortográfico de 1990.
A grandeza do idioma e suas idiossincrasias frequentaram o Sexto Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, realizado no início de fevereiro em Praia, capital de Cabo Verde. Nas ruas da cidade, como no restante do país, a língua mais falada é o crioulo, difundido além-mar nas letras das canções entoadas por Cesária Évora, a mais conhecida cantora cabo-verdiana.
O repórter do Globo Guilherme Freitas, que acompanhou o evento, recolheu declarações como a da poeta e historiadora angolana Ana Paula Tavares, para quem “grafar uma palavra com uma letra a mais ou a menos não vai resolver os problemas do português em Angola, como as dificuldades do ensino e a falta de leitura, que são as questões reais”.
No Rio, Evanildo Bechara manifestou opinião similar:
– Se tivéssemos a educação como elemento de primeira necessidade, o Brasil estaria em outro patamar de civilização.
Questão real é também a sobrevivência do português na mais nova nação do mundo, Timor-Leste, ex-colônia portuguesa ocupada pela vizinha Indonésia após a independência, em 1975. Nosso idioma voltou a ser liberado em 2002, após o fim da ocupação, mas, apesar de ser uma das quatro línguas oficiais no território situado no Oceano Índico (as outras são inglês, indonésio e tétum, dialeto local), o português é falado por apenas 5% da população de 1,3 milhão de pessoas.
Mais periclitante é a situação do português em Macau, a ex-colônia no litoral sudeste da China devolvida a este país em 1999. Oficialmente, 3% da população falam o idioma. Mas é muito difícil encontrar uma dessas pessoas. A língua sobrevive nas placas de trânsito, nos transportes públicos, letreiros de lojas e nomes de rua, em cantonês e português.
O romancista Luís Cardoso, representante de Timor Leste na reunião de Praia, deu o toque de otimismo tão necessário, ao definir lusofonia como “o conjunto dos falantes de português, com todas as suas diferenças”. E completou:
– É isso o que estamos a celebrar neste encontro.