Lembro exatamente onde eu estava quando soube que Jair Bolsonaro tinha sido eleito presidente do Brasil. Aguardava pacientemente uma nova vida, a Teresa, minha afilhada. Sentada no banco duro da sala de espera do hospital, me vi confrontada com sentimentos muito diferentes. De um lado, a alegria do nascimento. De outro, a angústia consciente a respeito de um projeto político concebido para fazer com que aquela nova vida não pudesse concretizar seus sonhos. Recebi Teresa no colo, tão pequena e alheia ao Brasil que tinha escolhido o pior plano político para ela. As mãos pequeninhas daquele bebê que dormia tranquilo no meu colo pareciam querer agarrar meus dedos e dizer que eu ia sobreviver. Apesar de tudo, iríamos sobreviver.
Leu essa? O Brasil real em “Bacurau”
Teresa foi crescendo e tive a honra de acompanhar seu desenvolvimento. Hoje é uma criança alegre, esperta, comunicativa e afetuosa. Uma menina criada no terreiro com o amor e a dedicação de seus familiares, permeada por saberes sagrados de uma forma de vida articulada pelo amor aos orixás. Ama seu próprio cotidiano, descobriu que sabe tocar tambor e aprimora esse saber sob o olhar amoroso de seu avô. Brinca, aprende, cresce, é uma criança feliz, ainda alheia ao que significa ser uma mulher de terreiro no Brasil. Ainda alheia aos esforços que sua mãe fez e faz para nada lhe faltar em um país onde as contas não batem, onde todos os dias a comida fica mais cara, onde viver a partir dos pressupostos civilizatórios de matriz africana pode significar um risco à própria vida.
Apesar de tudo isso, de todo o risco e de toda a violência, a gente deu um jeito. Sem romantizar o custo que esse “dar um jeito” tem, o fato é que apesar do ódio, da escassez, das angústias, a gente encontra uma forma de manter os sonhos vivos, encontra uma forma de atravessar esse projeto de ódio vivendo. Mantendo os sonhos pulsantes.
É sobre essa possibilidade de manter os sonhos, de superar as adversidades, de encontrar amor e afeto no cotidiano, nas coisas simples e complexas que “Marte Um”, o filme escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar, foca sua narrativa a partir do cotidiano da família Martins. Os Martins são uma família como muitas famílias que você conhece, pessoas que acreditam nos seus sonhos e vão lutando por eles em cada novo amanhecer. Pessoas que lidam com suas contradições e que buscam incessantemente a melhor saída.
Gabriel Martins entregou uma história de gente preta que foge do que habitualmente assistimos no cinema brasileiro. Em seu filme, a insistente pornografia do trauma negro e a pedante narrativa do negro que supera tudo são confrontadas por uma realidade que conhecemos. O olhar que Gabriel imprime sobre os Martins é o olhar de alguém que é como aquelas pessoas. Que conhece aquelas histórias e que não inventa o improvável sobre elas.
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Veja o que já enviamosO que nos toca e emociona é a humanidade dos personagens, com quem rimos, choramos, torcemos e nos emocionamos. Eunice, Tércia, Deivinho e Wellington são pessoas que, assim como nós, constantemente inventam formas de superar as presentes desigualdades de uma democracia que nunca se realizou plenamente para as pessoas negras. Esse recado talvez não seja evidente para qualquer pessoa que assista ao filme, mas é marcante. A eleição de Bolsonaro, que serve de abertura ao filme, é somente mais um episódio na vida de pessoas que constantemente vivem em uma sociedade que insiste em lhes suprimir a capacidade de sonhar. Pessoas que apesar disso, impõem seus sonhos e os perseguem.
Assim como lembro exatamente onde estava quando Bolsonaro foi eleito, lembro também que a angústia não cedeu lugar ao desespero como aconteceu com muitas pessoas nesse país. Não cedeu lugar ao desespero porque apesar dos avanços progressistas que experiências anteriores proporcionaram, a ameaçada democracia nunca se realizou plenamente para pessoas negras, o que realizamos é a nossa capacidade intransigente de sonhar e dar um jeito para que nossos sonhos não percam o brilho.
“Marte Um” toma os cinemas brasileiros às vésperas da eleição. É interessante que assim o seja, para que sejamos capazes de lembrar que independentemente do que aconteça a gente vai dar um jeito e manter nossos sonhos, não importa o tamanho que eles tenham.