Este texto poderia ser uma carta de despedida. Mas como, na prática, funciona despedir-se de quem não está mais aqui? Poderia ser uma homenagem. Confesso, porém, que sou do time que homenageia enquanto há tempo, enquanto há vida. Quando nenhuma das alternativas foi possível para mim, me vi perdida e sem prosa. O silêncio ensurdecedor sequestrou todas as palavras. As palavras que não pude dizer, o último abraço que nunca existiu, aquele pedido de desculpas que eu deveria ter feito.
Ele se foi.
“Ele se foi” foi a mensagem que recebi no início daquela noite. Um grande e velho amigo dos tempos de faculdade, o primeiro a me dizer que todo aquele estranhamento do ambiente universitário ia passar. Por muitos anos, ele ocupou aquele posto de melhor amigo, mas existia algo entre nós que era um entrave ao desenvolvimento da nossa construção de amizade.
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Quando conheci o Rafael de Castro Lins, mais conhecido somente como Castro, eu tinha 18 anos. Ambos cristãos, acreditamos profundamente na mensagem do Evangelho. Embora ele não fosse tão mais velho, havia uma sabedoria que vinha da vida que ele percorreu. Natural de uma cidade no interior do Ceará chamada Milagres, ele sobreviveu de um contexto de muita rejeição e o mais alto teor da cultura machista familiar. Uma personalidade introspectiva e nostálgica o tornou um ser extremamente generoso e um poeta sensível.
Já sabemos que a escrita salva a gente. E no caso do meu amigo, ela o salvou por quase três décadas. Ele escrevia e ponto. Sangrava e escrevia tudo o que não era possível alcançar. O não-dito, a frustração da desigualdade, os amores nunca correspondidos, a rejeição familiar. Lembro-me que ele preferia digitar, pois não tinha uma caligrafia fácil. E “caso alguma coisa lhe acontecesse”, dizia ele, ficaria feliz caso seus textos pudessem ser publicados e chegassem a outras pessoas que, porventura, enfrentam os mesmos transtornos.
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Veja o que já enviamosHá um certo silêncio e uma ética jornalística que nos atrapalha a tratativa do suicídio sob outras estratégias de comunicação. No Brasil, a taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano entre 2011 e 2022. O estudo publicado na revista científica The Lancet Regional Health – Americas foi desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/FioCruz Bahia), em parceria com pesquisadores de Harvard.
Os resultados, que fazem parte de uma análise de um conjunto de aproximadamente um milhão de dados, mostraram que houve uma redução global do número de suicídio, mas um aumento nas Américas. Um exemplo mais concreto: enquanto houve redução de 36% dos casos em escala global, a região das Américas fez o caminho inverso e aumentou 17% entre 2000 e 2019. No mesmo período, a taxa do Brasil aumentou 43%.
Quando colocamos a lente de raça e etnia no tema, a população indígena ocupa o auge das notificações — 100 casos a cada 100 mil pessoas. A revelação preocupante e um tanto quanto assustadora não teve a ver com a era pandêmica, pois, infelizmente, o aumento das taxas se manteve persistente ao longo dos anos.
Enquanto especialistas da psicologia e psiquiatria vão nos dizer que o fenômeno é multicausal, há uma evidência forte para a desigualdade de renda nos municípios brasileiros. Diferente dos países desenvolvidos, a matemática do mapeamento do Brasil é cruel: municípios com menor renda e redução de renda.
Lembro que, aproximadamente um ano antes de o Castro nos deixar, ele me contou que estava juntando dinheiro para custear um tratamento mais agressivo, por meio da psiquiatria intervencionista. Eu nunca tinha ouvido falar da Eletroconvulsoterapia (ECT) tampouco da Estimulação magnética transcraniana (EMT), que se configuram em tratamentos “físicos”, não-farmacológicos e mais modernos para transtornos mentais graves indicados para pacientes que, independentemente da dose, não respondem mais às medicações prescritas e disponíveis.
Em tempos de guerra de narrativas sobre a defesa da vida e a morte, confesso que me sinto insegura em reforçar um posicionamento de quais seriam as melhores estratégias de prevenção ao suicídio, encarando como um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e reforçado pelas desigualdades nas Américas. Se especialistas afirmam que é um fenômeno multicausal, não existe apenas um percurso de enfrentamento. Do luto à luta, tenho esperança que consigamos ser mais eficazes diante da seriedade e impotência que o tema nos impõe.
Ele escolheu nos deixar? Ou será que ele não teve escolha? Viveu enquanto foi possível sobreviver, sob muita angústia, muita perturbação no corpo e na alma. Para mim, havia um limite de até onde eu poderia (e conseguiria) ir. Ele partiu, sozinho, e hoje nos sobram memórias, sonhos não realizados e, ao menos, poesias de uma brava sobrevivência.
Finalizo uma coluna extremamente difícil expressando toda a minha solidariedade às famílias, amizades, companheiros e companheiras que perderam uma vida integrante das estatísticas mencionadas. Nem todo luto precisa ser uma luta, uma militância. Às vezes, só queremos sofrer. Hoje, eu só quero sofrer, lembrar e escrever.
Descanse em paz, meu grande e velho amigo. Nos vemos na eternidade!