“Minhas filhas estão em quarentena”

Polícia e militares na vazia praça São Marcos, em Veneza, na Itália, durante a quarentena do coronavírus. Foto Giacomo Cosua/NurPhoto

Brasileira sofre para voltar ao norte da Itália, um dos epicentros do coronavírus, para reencontrar a família

Por Janaína Cesar | ODS 3 • Publicada em 16 de março de 2020 - 12:53 • Atualizada em 20 de março de 2020 - 10:36

Polícia e militares na vazia praça São Marcos, em Veneza, na Itália, durante a quarentena do coronavírus. Foto Giacomo Cosua/NurPhoto

A última semana foi uma das piores da minha vida. Me encontrava no Brasil quando a Itália inteira entrou em quarentena. A medida faz parte do decreto assinado pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte para enfrentar a emergência do coronavírus e vai até o dia 3 de abril. Imediatamente pensei nas minhas filhas lá em casa com o pai. Moro na Itália há 15 anos e, por conta do meu trabalho, sou jornalista, estou sempre viajando. Aprendemos logo cedo a lidar com a distância, mas, desta vez, ela se tornou um calvário.

Eu, do outro lado do mundo, não sabia exatamente o que fazer, a única coisa que me vinha à mente era conseguir antecipar minha passagem de volta para a Itália e para as minhas filhas. Passei dias de agonia, pois as novidades relacionadas as restrições emitidas pelo governo italiano e à segurança das pessoas não eram nada boas.

Minhas pequenas já estavam sem ir à escola desde 24 de fevereiro, quando o governo decidiu pela primeira vez fechá-las para a segurança das crianças. Mas elas ainda podiam se reunir fora do ambiente escolar, ir ao parque, tomar um sorvete ou até mesmo dormir na casa de amigos. Com a quarentena, isso tudo acabou. Agora estão abertos somente supermercados e farmácias.

Cartinha de boas vindas escrita pelas filhas: "Você perfuma como uma flor, é gentil e elegante, as vezes é um pouco durona, mas é cheia de energia.. Por isso te amamos tantooooo. Bem vinda". Reprodução
Cartinha de boas vindas escrita pelas filhas: “Você perfuma como uma flor, é gentil e elegante, as vezes é um pouco durona, mas é cheia de energia.. Por isso te amamos tantooooo. Bem vinda”. Reprodução

As meninas foram informadas pelo pai que não poderiam mais sair de casa até a data final do decreto. A sorte é que temos um pequeno jardim onde elas podem ir quando bate a paranoia de ficar fechado em casa. Nada está sendo fácil. Para não perder o ano escolar, as professoras começaram a usar o espaço virtual e quase todos os dias têm algo para se fazer, o que é bom, pois as distrai um pouco.

Sei que elas, algumas vezes, fazem vídeochamadas com as amigas da escola ou ligam somente para escutar uma voz conhecida e saber como estão. Os grupos de pais no WhatsApp também não param. Não são todos que têm o acesso ao mundo virtual para baixar as lições de casa, então alguém se prontifica e depois compartilha. Um dia, durante uma vídeochamada, minha filha mais velha, começou a chorar e não queria me contar o motivo. Após um tempo ela se abriu e disse que estava triste porque queria ver suas amigas, sua escola, sair de casa e não podia fazer nada por causa do vírus. Do outro lado do mundo eu tentava acalmá-la, mas percebi o estresse psicológico que estava causando nela e, penso, em muitas outras crianças.

No decorrer de uma semana, meu voo de Roma para Veneza foi cancelado, assim como o voo de meus colegas de São Paulo para Roma e, praticamente, todas as companhias aéreas pararam de voar para a Itália, somente Alitalia, de bandeira italiana, manteve os seus voos. Além disso ficou proibido o deslocamento entre várias cidades. Ele só acontece se for devidamente justificado como emergência ou trabalho. Quem infringir as regras pode ser multado ou até preso.

Com tudo acontecendo de forma tão rápida, cada dia a mais no Brasil significava a impossibilidade real de voltar para casa.  Dia 12, quinta-feira, entrei em pânico com a notícia de que o terminal 1 do aeroporto de Roma, de onde saem os voos domésticos, fechará a partir do dia 17. Em teoria, chegaria no país nesta data, pois minha passagem de retorno era para o dia 16. Mas as informações eram truncadas, e na verdade os voos serão remanejados para o terminal 3, destinado aos voos internacionais. Essa medida foi tomada por causa dos cancelamentos das outras companhias.

Enquanto isso, eu só conseguia pensar nas minhas filhas longe de mim. Sabia que elas estavam em boas mãos, aliás, em ótimas mãos, pois estavam com o pai, mas nada conseguia acalmar meu coração. Continuava aterrorizada, pensando na possibilidade de não conseguir voltar e ficar longe delas até o final da quarentena.

O fim da quarentena está previsto para o dia 3 de abril, só que essas previsões vêm se arrastando conforme o vírus vai se expandindo. É justo que as pessoas permaneçam em casa nesse momento para evitar a expansão do vírus, e o que eu mais quero é estar em casa, ao lado das minhas filhas.

Em Nápoles, na Itália, passageiro solitário usa uma máscara contra o coronavírus na viagem de trem. Foto Paolo Manzo/NurPhoto

Eu sei que será um período difícil, na verdade já está sendo para elas e para todos que estão na Itália neste momento. Não é fácil viver confinado dentro de casa. Eu ligava todos os dias, queria saber como estavam, o que haviam feito e tentava transmitir tranquilidade, dizendo que tudo estava bem e que logo eu voltaria para a casa.
Como todas as outras crianças que vivem na Itália, elas também estão aprendendo a lidar com essa nova realidade, essa nova rotina.

Eu ainda não sei como é viver em quarentena, estou começando a descobrir, acabei de chegar em casa. Mas não importa o quanto difícil seja, o importante é que eu consegui voltar para os braços das minhas filhas. A Alitalia antecipou minha passagem, embarquei na sexta, dia 13 e cheguei em casa por volta das 18h do dia seguinte.

O controle nos aeroportos italianos está sendo feito de forma rigorosa: controlam a temperatura de todos que desembarcam e pedem a cada 10 minutos para os viajantes mantenham a distância mínima de segurança de 1 metro. Além disso todos precisam preencher um certificado declarando onde esteve e porque está viajando para determinado lugar. Talvez esse período nos ensine a sermos mais humanos uns com os outros, a sermos mais pacientes e tolerantes e, principalmente, nos ensine a dar valor à saúde pública, porque é graças a ela, mesmo com todas suas limitações, que a Itália está resistindo.

Janaína Cesar

Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.

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