Memórias de tribo indígena e da ditadura perdidas com a pandemia

Irmãos suruí-aikewara, que guiaram militares na repressão à Guerrilha do Araguaia, morrem de covid-19 em aldeia no sudeste do Pará

Por Cecília Bueno | ODS 16ODS 3 • Publicada em 12 de agosto de 2020 - 08:24 • Atualizada em 23 de agosto de 2020 - 16:37

Os irmãos Warini, Api e Arikasu, do povo Suruí Aikewara: mortes por covid-19 de indígenas que foram obrigados a colaborar com o Exército na caçada aos guerrilheiros do Araguaia na década de 1970 (Foto: Rede de Apoio Mútuo Indígena do Sudeste do Pará)

Na aldeia Sororó, no sudeste do estado do Pará, todos os moradores cortaram o cabelo. O gesto é um ritual de luto comum aos surui-aikewara, um dos povos tupi-guarani. Warini Suruí foi a primeira vítima de coronavírus do grupo. Em meados de maio, o ancião de 85 anos foi internado no UTI do Hospital Municipal de Marabá. Apresentava um quadro grave de pneumonia e baixa saturação de oxigênio no sangue. Após duas semanas em coma, sem nenhum aviso prévio à sua família, ele foi transferido para o novo hospital de campanha da cidade. Passou 12 horas ali, mas não resistiu. Seu corpo voltou à terra natal para um enterro sem cerimônia. 

A morte de Warini inaugurou na aldeia um profundo estado de luto. O ancião fazia parte de uma família de líderes muito respeitada. Ele morava junto dos seus 5 filhos, além de netos e bisnetos. No total, 320 pessoas vivem na aldeia como uma grande família. Mais tarde no mês, a comunidade sofreu outras duas perdas por covid-19: Arikasu Suruí, de 80 anos, morreu no dia 15, e Api Suruí, de 63 anos, no dia 23. Eles eram irmãos mais novos de Warini e acompanharam o mais velho na luta pela demarcação da Terras Indígena Sororó, no sudoeste do Pará.

Os três anciões guardavam a memória de um período que ficou conhecido pelos moradores da aldeia como o “tempo da guerra”. Na década de 1970, as Forças Armadas ocuparam o território dos aikewara à procura dos guerrilheiros do Araguaia que se escondiam na região, nos meandros da floresta amazônica. Entre 1972 a 1974, as tropas envolveram a população local no combate aos militantes do PCdoB. 

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De modo compulsório, os militares recrutaram os homens jovens que conhecessem bem o território. As relações de abuso de poder foram facilitadas pelo apoio da equipe de assistência tutelar da Funai, que havia sido instalada na aldeia em dezembro de 1971. Os servidores apresentavam a devolução de parte território original como recompensa para o serviço. Diziam aos indígenas que eles só precisariam indicar o caminho na mata; depois, retornariam à aldeia. Não foi o que aconteceu. 

Warini, Api, e Arikasu estavam entre os escolhidos para guiar as tropas na caça aos “terroristas” — forma como os soldados se referiam aos inimigos —, mas os irmãos só conseguiram voltar para casa ao final das campanhas militares. Em duplas, os indígenas eram obrigados a caminhar sempre à frente do exército, impelidos pelas armas e pelos empurrões que levavam. Carregavam, às costas, as cargas pesadas das tropas, privados de alimentação e sono, em viagens que duravam dias, em busca dos esconderijos. Presenciaram muitas cenas de tortura contra os moradores do campo e os jovens guerrilheiros. Em um episódio, estiveram próximos ao local onde os militares ordenaram aos camponeses que decapitassem corpos de militantes já mortos. Warini foi obrigado a depositar alguns dos cadáveres nos helicópteros militares.

[g1_quote author_name=”Winurru Suruí” author_description=”Neto de Warini e coautor de relatório sobre a operação militar na terra indígena nos anos 1970″ author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Nossos parentes foram forçados a fazer parte dessa história, que não era deles. É uma história triste, mas querendo ou não, isso agora faz parte no nosso povo

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Por muito tempo, os Suruís do Pará, como também são denominados, carregaram o estigma de terem sido colaboradores dos militares na tortura dos guerrilheiros. Em 2013, um relatório recuperou a história oculta dos indígenas que viveram aquele período. Os depoimentos evocam as lembranças dos crimes cometidos contra a comunidade: os que não foram forçados a um regime servil nas campanhas militares, ficaram na aldeia, sob a vigília de um acampamento militar, privados da liberdade de saírem de suas casas e impedidos de se alimentarem.

Casas incendiadas e roças destruídas

Escrito pelos antropólogos Iara Ferraz e Orlando Calheiros e pelos aikewara  Winurru Surui e Tiapé Surui, o relatório “O tempo da guerra: os Aikewara e a Guerrilha do Araguaia” foi submetido à Comissão de Anistia. A medida resultou na conquista do perdão político a 14 indígenas forçados a participar do combate aos guerrilheiros: o grupo – inclusive os irmãos Warini, Api, e Arikasu – recebeu indenizações do estado. O documento também entrou para o relatório da Comissão Nacional da Verdade, na vasta compilação das violações da ditadura militar contra os povos indígenas.        

Warini Suruí durante celebração da Semana dos Povos Indígenas, em 2019 Morte de ancião de 85 anos, líder de luta pela demarcação das terras indígenas, causou comoção na aldeia (Foto: Zélia Maria Batista/Cimi)
Warini Suruí durante celebração da Semana dos Povos Indígenas, em 2019 Morte de ancião de 85 anos, líder de luta pela demarcação das terras indígenas, causou comoção na aldeia (Foto: Zélia Maria Batista/Cimi)

Um depoimento de Api, de agosto de 2013, demonstra que eles não tinham conhecimento sobre as intenções dos militares: “É… nós sofremos demais,(…) nesse tempo que aconteceu essa “guerra aí, nós num sabia de nada, nós entremo assim mesmo, sem saber de nada! (…) inocente mesmo nós entremo, num sabia de nada!”

Em abril de 1972, a aldeia se preparava para um ritual da estação seca, o karuwara, quando uma tropa de oficiais militares chegou pelo ar. Helicópteros circularam sob céu, arrancando as coberturas das casas feitas de palha. Muitos correram para se esconder na mata e esbarraram com a tropa que chegava por terra. Os soldados apontaram armas para as mulheres e proibiram qualquer movimentação para fora da aldeia. As altas patentes indagavam ao cacique – na época, Sawara’á, irmão de Warini, Api e Arikasu – sobre a presença dos “terroristas” e arrastaram os homens jovens para servirem de guia na mata.

Api Suruí, memórias das ações dos militares contra os guerrilheiros do Araguaia: “nesse tempo que aconteceu essa “guerra aí, nós num sabia de nada, nós entremo assim mesmo, sem saber de nada!” (Foto: Rede de Apoio Mútuo Indígena do Sudeste do Pará)

Nos dias que se seguiram, os militares incendiaram seis casinhas, o roçado e o paiol que guardava os alimentos da festa que preparavam. Fizeram assim em toda a região, com o alegado intuito de dificultar a obtenção de alimentos pelos guerrilheiros com possíveis colaboradores. Todos os membros da aldeia Sororó foram proibidos de sair de casa e ficaram impedidos de se alimentar através da colheita da roça, da caça, da pesca e da coleta de frutos na mata. Passaram a depender dos alimentos industrializados fornecidos pelo chefe do posto da Funai ou pelos militares.

O barulho das rajadas de metralhadoras, explosões de granadas e dos seguidos tiroteios perdurou por três anos. Um grande acampamento foi erguido a apenas 100 metros da aldeia, onde os soldados passaram a controlar todos os movimentos da população. Uma outra base militar de operações foi estabelecida nas proximidades do rio Gameleira, no limite fronteiriço da atual Terra Indígena Sororó. Nas retiradas temporárias das tropas, a aldeia improvisava pequenos abrigos e ensaiava sua reconstrução, que só chegou a ser efetivada com a completa saída das Forças Armadas em 1974. 

Winurru Suruí, um dos autores do documento, é neto de Warini. Durante toda a vida, ele ouvira os anciões contarem as mais diversas estórias. Deitados ou sentados em uma rede, confeccionando utensílios, os velhos transmitiam oralmente aos mais jovens, que se reuniam à volta, as tradições e as imagens de seu mundo. Winurru explica que a triste narrativa da guerra foi introduzida pelos militares nos anais dos aikewara. “Nossos parentes foram forçados a fazer parte dessa história, que não era deles. É uma história triste, mas querendo ou não, isso agora faz parte no nosso povo”, lamenta.

Professor e gestor da escola da aldeia, ele luta contra o esquecimento dos signos da cultura aikewara e se empenha em transformar essas narrativas em materiais didáticos para as crianças. Winurru se preocupa com as perdas irreparáveis dos ancestrais durante a pandemia: “Essas pessoas acumulam um conhecimento milenar, são bibliotecas de conhecimento vivo. Tudo nosso é via oral, é nossa estratégia de transmissão de conhecimento. O ancião tem na memória coisas que só podemos saber através da transmissão oral”, destaca. A morte de velhos indígenas representa o desaparecimento de um vasto fragmento da história desses povos. A língua, o grafismo, os objetos, as músicas e as crenças do mundo antigo podem sumir no campo da desmemória. 

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, registra 255 mortos pela doença e 13.564 infectados entre indígenas de todo o país. A Apib contabiliza 570 óbitos e mais de 18 mil contaminados. A Apib denuncia que os dados do Ministério da Saúde são subnotificados, porque só contam os índios que vivem em terras indígenas homologadas, enquanto eles consideram todos os índios declarados, incluindo os que moram em cidades.

Indígenas suruí aikewara em reunião da Comissão da Anistia em 2013: indenização pelos trabalhos forçados e destruição promovida por militares no Araguaia (Foto: Isaac Amorim/Ministério da Justiça)

Aldeia sem prevenção e sem prevenção

A pandemia do coronavírus não foi a primeira a ameaçar a população aikewara. Em 1960, a invasão de missionários no território e o contato com castanheiros situados na região trouxeram uma epidemia de gripe, que matou a maior parte da tribo, reduzida de 126 para 40 pessoas. Em 1962, um surto de varíola matou seis indígenas. Quando os militares chegaram para enfrentar os guerrilheiros, na década de 1970, a tribo tinha pouco mais de 50 pessoas.Os aikewara tinham se estabelecido às margens de um igarapé, afluente do Rio Sororó, desde o início do século XX. Hoje vivem espalhados pelas aldeias da Terra Indígena Sororó e somam cerca de 520 pessoas.

No dia 13 de maio, a notícia do diagnóstico de Warini inaugurou na aldeia um estado de consternação coletiva. Quando adoeceu, seus sintomas foram confundidos com os da gripe. Amigos e parentes iam visitá-lo e levam-lhe chás e outros remédios caseiros. Até então, o nenhuma medida preventiva havia sido adotada na terra indígena. Com o diagnóstico, as lideranças indígenas locais decidiram iniciar o isolamento social. Recomendaram a prorrogação das rotineiras idas à Marabá, cidade mais próxima, para realização de compras e pagamento de contas e proibiram a entrada quem não fosse morador no território. Compraram e distribuíram máscaras e álcool em gel entre a população.

Funcionários da Sesai havia realizado uma palestra na aldeia em meados de março, assim que o primeiro caso de contágio foi confirmado em São Paulo. Recomendaram aos indígenas que evitassem as aglomerações das cidades e, caso saíssem das aldeias, usassem máscara de proteção e realizassem a higienização das mãos com álcool ou sabão. Agente de saúde da aldeia, Murué Suruí revelou que não houve distribuição desses materiais nas aldeias – a Sesai alegou que não tinha quantidade suficiente nem para os próprios funcionários. Antes do contágio de Warini, nenhum teste havia sido realizado no território indígena.

Acionada pelas lideranças da tribo, a Sesai realizou alguns testes rápidos, mas só entre aqueles que apresentavam os sintomas mais graves da doença. Foi quando descobriram que Api e Arikasu estavam contaminados. Tiveram que ser levados ao hospital em Marabá, devida a ausência de estrutura do posto de saúde da aldeia para tratar a covid-19.

Os representantes da comunidade tiveram que recorrer a outras instituições para conseguir mais testes. O Projeto Reviver – parceria da Prefeitura de Marabá e do Ministério Público Estadual, que atuava na recuperação de áreas desmatadas da Floresta Amazônica no território aiwekewara – doou um lote de testes rápidos. Dos 200 exames realizados em 13 de junho, 160 deram positivo, o que significava, em escala, mais da metade da população da aldeia contaminada. 

A agente de saúde, Murué, e dois técnicos de enfermagem compõe o quadro fixo de profissionais da saúde na aldeia. Com a descoberta dos casos todos de uma só vez, as lideranças da aldeia solicitaram um reforço de equipe para a Sesai. Durante o pico de contágio, dois enfermeiros e quatro técnicos de enfermagem passaram a atuar dentro do território, mas nenhum médico foi enviado. A maioria da população foi tratada com remédios caseiros, garrafadas de casca de árvore e chás de limão, gengibre e alho. 

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A sociabilidade entre pessoas da aldeia é muito grande. A conscientização é feita pelos próprios moradores, que recomendam uns aos outros o uso de máscara, a higienização quando retornar da cidade com álcool e não entrar em casa com roupa da cidade.

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O contágio de mais de metade dos moradores da aldeia e o isolamento imposto para não alastrar ainda mais o vírus interromperam as atividades agrícolas e de caça que alimentam a comunidade. A situação chegou a preocupar as lideranças do povo, que conseguiram arrecadar doações de instituições amigas da tribo – como o MST, a Universidade do Estado do Pará e o próprio Projeto Reviver – para evitar a fome entre os indígenas.

Em julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos a lei que prevê medidas emergenciais proteção aos indígenas durante a pandemia – entre os dispositivos excluídos, está o parágrafo que obrigava a União distribuir alimentos diretamente às famílias “na forma de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas”. Ele também barrou a garantia do aldeias o acesso de água potável, a distribuição de materiais de higiene e de desinfecção de superfícies e a oferta de leitos hospitalares, unidades de terapia intensiva (UTIs), respiradores mecânicos e máquinas de oxigenação sanguínea.

O sudeste do Pará é morada de 12 mil indígenas de 14 povos diferentes, que estão espalhados por 39 municípios do Estado. A vulnerabilidade dos povos dessas terras está relacionada a presença da BR-153, que facilita o trânsito entre as terras indígenas, as cidades e os locais onde funcionam grandes empresas mineradoras, como a Vale. Hoje federalizada, a rodovia remonta aos tempos da ditadura militar, quando as Forças Armadas construíram estradas que cortavam a Terra Indígena Sororó e outros territórios indígenas para facilitar as operações contra os guerrilheiros do Araguaia. 

Passado o pico de contágio na aldeia e a fase de luto pelas vidas perdidas, a movimentação na terra indígena parece estar voltando à normalidade, o que preocupa Winurru.  “A sociabilidade entre pessoas da aldeia é muito grande. A conscientização é feita pelos próprios moradores, que recomendam uns aos outros o uso de máscara, a higienização quando retornar da cidade com álcool e não entrar em casa com roupa da cidade. As pessoas acham que o fato de terem sido infectadas significa que elas estão imunes”, comenta.    

Durante a fase mais aguda de contágio, algumas famílias saíram da aldeia e procuraram na Floresta Amazônica um outro lugar para se estabelecer por um tempo. O movimento é o que restou de um antigo ritual dos suruís: quando um parente morria, toda a comunidade abandonava o local de morada e buscava outro sítio para reiniciar a vida. Como se afastar de um lugar que remetesse memória do morto pudesse diminuir a dor de sua ausência. A identidade antiga nômade resiste só como lembrança dos ancestrais – hoje os índios voltam à aldeia depois de um tempo em outro refúgio. O corte de cabelo após a morte de um parente, citado no início da reportagem, simboliza o fim de um ciclo e a espera pela renovação da vida.

Cecília Bueno

É jornalista formada pela PUC-Rio; gosta de escrever histórias que envolvam os temas de memória histórica, meio ambiente, política e cultura. Trabalhou como assistente de direção no cinema e em novelas e séries da Rede Globo.

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