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A dor ao som da risadinha sarcástica de Deus

A rotina dolorosa de um paciente renal obrigado a retomar o tratamento quando já pensava estar livre da doença

ODS 3 • Publicada em 14 de julho de 2023 - 10:47 • Atualizada em 18 de julho de 2023 - 09:35

Prostrado na cama, manuseio o notebook. A tela branca não é só uma tela branca, é minha amiga na escrita, companheira inseparável de uma vida. Talvez até aqui, uma das que menos se colocou a pensar em me deixar. E eu também não a deixaria assim, tão fácil.

Com dois travesseiros abaixo da coluna, atravesso a crise de dor, sob efeito dos remédios. Nunca apenas um, mas muitos – a ponto de me fazer acalmar e não voar no pescoço de alguém até que deixe de sofrer. Pelo menos até o próximo estágio.

Leu essa? Quem cuida de quem cuidou?

Assim tem sido a volta de paciente renal, ainda que jovem, mais reincidente. Foi comemorar em maio recente um ano do périplo que me custou a vida por sete meses consecutivos, que duas semanas depois me via novamente desanimar pela notícia nada agradável. Como é interno, pouco se traduz ao esforço físico que apresento. Na real, as olheiras já não deixam mentir o abatimento. Os olhos cansados explicam as noites pouco confortáveis. A falta de apetite, muitas vezes, acelera a condição de quem vai navegando pelo mar em grande oceano, sem muita força.

Desde então, a parada é louca. Mil fitas. A depender de como se acorda – quando se consegue – uma eterna luta para o ânimo. Não é só a bad, mêu. É a bad mais um enorme sentimento de rolo compressor em cima, em baixo, da cabeça aos pés. Chega até duvidar: consigo tomar banho hoje sem incômodo?

O bagulho fica mais intenso quando você fica felizinho e acha que conquistará o mundo. Até que a dor vem. E não pouca. Muita. E daí fo-deu. Não há nada que apague tão cedo.

Sua imunidade vira uma montanha-russa. E dá-lhe uma sequência de exames. Médicos. Exames. Médicos. Exames. E médicos. Nesse rala e rola das idas contínuas, acaba agarrando amizade na recepcionista da clínica, vê uma amiga te atender, já troca figurinhas com o segurança do hospital, é bem recebido e até toleram seus cinco minutos de atraso quando a sua consulta é a última do dia e você foi caminhando até o lugar – ao invés de tomar um Uber ou táxi que seja pra chegar mais rápido. Isso porque não queria mostrar fraqueza e sim uma enorme vontade de estar vivo; e, pombas, pode chegar andando. Tolinho….

De tantos laboratórios, você começa a ficar até sedento por mais. ‘Irmão, desce aí três tiradas de chapa do meu rim’; ‘Quando é que vamos ter um exame com contraste, só pelo barato?’. ‘Aí, que saudade da endoscopia…’. Totalmente descompassado, né? Mas é essa a estratégia para não esmorecer frente a um tratamento que, puxa, lhe toma a vida. E de novo. Quase o eterno retorno daquilo que já viveu, mas com novos atores (e pensar que só comecei a ler Milan Kundera há uns dias).

Ou mesmo pensar que vivo o dilema de Sisífo: subir a montanha com a grande pedra, até que chegando no topo, desço. E tudo recomeça. “Vai passar de hora em hora, depois que ligarem a TV”, cantaria Lulu. Só que no meu caso, é o que se espera a cada ida de rotina semanal, aos novos processos e dores da lida de quem retoma um tratamento quando pensou que estava ‘free’.

O trabalho ajuda a remediar. Que nem o mais novo livro de Rita Lee, que, nesta outra biografia, descortina o ser que é – rainha – como uma total e humana senhora em tratamento de câncer. Mas sem perder o bom humor que lhe era peculiar.

Não à toa, a primeira página do livro traz um aprendizado que tem ressoado em minha cuca: ” (…) é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”.

Ufa! Acho que deu pra terminar de escrever a coluna.

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