Comer é um ato político. Ir ao mercado, selecionar alimentos, pagar a conta, cozinhar. Ultraprocessados versus alimentos orgânicos. Ser vegano ou vegetariano. Sair para jantar em um restaurante preferido no dia do seu aniversário. Esse poderia ser o roteiro de um filme possível apenas para uma parcela da população se não soubéssemos o número assustador por trás da realidade de injustiça alimentar no Brasil: em 2024 – 8 milhões de brasileiros enfrentam a fome em nosso país.
Leu essa? Fome atinge duas vezes mais famílias chefiadas por pessoas pretas
O primeiro estudo do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), lançado pelo eixo de pesquisa e dados, apenas aprofundou uma verdade que já sabemos, mas com uma perspectiva da população negra no Brasil. A fome tem cor e tem rosto de mulher. A publicação intitulada “(In)segurança alimentar e nutricional” escancara como a fome afeta, de maneira absolutamente desproporcional, as populações mais vulnerabilizadas do nosso país — especialmente mulheres negras das regiões Norte e Nordeste. A discussão poderia centrar no tema de justiça e prosperidade econômica, mas a injustiça climática foi o mote para reiterar que a insegurança alimentar é também agravada pela intensificação dos eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e enchentes.
Recentemente me perguntaram porque fazer publicações com dados secundários que, muitas vezes, perpetuam a narrativa da “população mais vulnerabilizada” e só. A pergunta veio em um momento oportuno, mas a resposta é sempre um desânimo: é tempo de reforçar o óbvio. Quão melhor informada um grupo populacional estiver, mais ferramentas de enfrentamento e incidência política teremos? Quais são as reais regras do jogo de incidência e pressão?
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Veja o que já enviamosAprendemos que o caminho da tomada de decisão passa por muitas etapas e burocracias, não basta jogar um dado no ar. Por exemplo, a crise climática não só impacta a produção agrícola, reduzindo a disponibilidade de alimentos, como também agrava a situação das populações que já vivem em situação de extrema pobreza e desigualdade. O boletim informativo do CBJC destrincha que a insegurança alimentar no Brasil tem cor, gênero e localização. Populações negras, particularmente as mulheres negras das áreas rurais e periféricas, são as mais afetadas pela fome.
Enquanto discutimos alimentação saudável e agendamos consultas com nutricionistas,a comunidade de pequenos agricultores são os primeiros a sentir o impacto das mudanças climáticas, o que reduz a oferta de alimentos e aumenta os preços para toda a população. Enquanto as mulheres de classe média estão aprisionadas às dietas de resultados rápidos e milagrosos, a justiça climática está intrinsecamente ligada à justiça alimentar. Se não enfrentarmos as causas estruturais da desigualdade, não conseguiremos garantir o direito humano e fundamental à alimentação adequada para todos e todas.
A desgraça é cíclica. Além de tudo isso, comunidades tradicionais, como quilombolas, indígenas e ribeirinhos, têm seus modos de vida ameaçados pela destruição dos ecossistemas nativos. A monocultura, como a de soja e milho, e a pecuária extensiva contaminam solos, rios e ar, prejudicando ainda mais o acesso a alimentos em regiões onde a produção agroecológica deveria ser estimulada.
Eu acho interessantíssimo o conceito de afrofuturismo e toda a possibilidade de criar narrativas fictícias de protagonismo da população negra. Por muitas vezes, é o que salva o nosso esperançar. Contudo, me vejo em um espiral insistentemente pessimista: tem gente preta passando fome, tem criança preta morrendo de fome. Tem gente que não tem certeza de quando será a próxima refeição. Tem gente assaltando mercados para comer, e não para vender alimentos “furtados”.
O caminho para a segurança alimentar passa pela justiça climática. Então, o que realmente é suficiente? Em tempos de emergência e crise climática, não é suficiente garantir o acesso a alimentos. É preciso assegurar que, em meio a tantas urgências e contradições, esses alimentos sejam saudáveis, acessíveis e produzidos de forma sustentável. Não é suficiente que tenhamos políticas públicas centradas no princípio de justiça alimentar “para toda a população”. Precisamos, sim, de um recorte específico para mulheres negras do Norte e do Nordeste, que se encontram em um contexto muito hostil comparado a outras regiões do Brasil.
Quem passa fome não tem energia para lutar por políticas públicas. Quem tem fome, tem pressa. Dentre as propostas que o boletim informativo apresenta para enfrentar as injustiças climáticas e mitigar os impactos da crise instaurada, destacamos três – menos paliativos e mais estruturais de mobilização:
- Fortalecimento da agricultura familiar: incentivar a produção agroecológica em pequenos e médios produtores para garantir uma oferta diversificada de alimentos saudáveis.
- Proteção dos territórios tradicionais: garantir que quilombolas, indígenas e ribeirinhos tenham acesso e controle sobre seus territórios, fundamentais para sua segurança alimentar.
- Adoção de políticas públicas inclusivas: promover a inclusão das populações vulnerabilizadas nas discussões políticas sobre segurança alimentar e justiça climática, com a participação ativa da sociedade civil e dos movimentos sociais.