Quando Marina Íris cantou, visceral e arrebatadora, “Histórias para ninar gente grande”, samba-enredo campeão com a Mangueira em 2019, na posse de Anielle Franco no recriado Ministério da Igualdade Racial, uma revolução carnavalesca desembarcou no centro do poder. Ecoou pelo Palácio do Planalto, a 1.167 quilômetros da Sapucaí, o “samba da Marielle”, a irmã da ministra citada na música, vereadora carioca assassinada em 2018, num crime ainda impune.
“Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”, clama a letra de Manu da Cuíca, na composição assinada também por Tomaz Miranda, Ronie Oliveira, Márcio Bola, Mamá, Deivid Domênico, Danilo Firmino e Luiz Carlos Máximo. O hino e o enredo, na verdade, tratam de fatos e personagens apagados da história do país e deram no desfile-símbolo da guinada progressista das grandes escolas de samba do Rio.
Em 2023, a Passarela do Samba abrigará mais um festival de críticas e questionamentos a mazelas variadas de nossa sociedade. “Ordem é o mito do descaso/ Que desconheço desde os tempos de Cabral/ A lida, um canto, o direito/ Por aqui o preconceito tem conceito estrutural/ Pela mátria soberana, eis o povo no poder/ São Marias e Joanas, os Brasis que eu quero ter”, reivindica o samba da Beija-Flor, do enredo que exige “uma nova independência” a partir do grito dos excluídos.
“E foi-se então… Adeus, capitão!/ No estouro do pipoco/ Rola o quengo do caboclo/ A sete palmos desse chão”, canta a Imperatriz, falando de Lampião e Maria Bonita com doses industriais de duplo sentido. A escola de Ramos, aliás, tem como criador de seu enredo o mesmo Leandro Vieira do “samba da Marielle”. O carnavalesco detonou a transformação dos últimos anos, que levou as gigantes da folia à viagem – aparentemente sem volta – por temas críticos e questionadores.
A história do hino mangueirense cantado em Brasília está pontilhada, no entanto, de pecados bem brasileiros. A citação a vereadora e ativista é ideia de Manu, que, a princípio, não foi creditada como autora. Diante da demanda do enredo, de citar “Marias, Mahins e malês”, a compositora lembrou de Marielle – e fez-se a mágica que pavimentou o caminho do título.
A autora não assinou seu gol de placa, a princípio, por estar concorrendo na disputa da Portela. Além disso, grávida, deixou essas questões em compreensível segundo plano. “Mudei porque o samba se fortaleceu. É muito difícil a gente, que é mulher, ocupar alguns lugares, e não me senti no direito de invisibilizar a gente, justamente quando consegui”, narrou Manu ao “Globo” dias depois daquele Carnaval. “Vale ressaltar que não foi nenhum impedimento ou dificuldade com meus parceiros. Mas, em certas situações, não temos o direito de nos calar”, ensina, plena de razão.
(O crédito a ela e a Luiz Carlos Máximo foi dado ainda antes do desfile, quando a informação se espalhou na bolha do Carnaval. Mas até hoje, vários catálogos virtuais mantêm a autoria incompleta.)
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Veja o que já enviamosA hoje ministra não desfilou na Mangueira, nem o restante da família biológica de Marielle. Só a viúva, Mônica Benicio, e outros integrantes do PSOL, partido da vereadora assassinada, foram convidados pela verde e rosa. Anielle, seus pais, e a filha da homenageada, Luyara, saíram na Vila Isabel. A trapalhada rendeu críticas mas não tirou o brilho do desfile e do título da Estação Primeira. O “samba da Marielle” rompeu a bolha carnavalesca, segue cantado em rodas pelo Brasil inteiro – e até no Planalto.
Ponto de virada na odisseia das escolas, historicamente obrigadas a serem adesistas, por viverem nas frestas de uma elite racista que as odeia, tenta domesticá-las e, no limite, eliminá-las. Assim, carregam o destino, desde o nascimento, de negociar, em eterna posição de fragilidade, com o poder vigente.
Cheio de razão, Paulo da Portela, inventor do formato de cortejo e mais importante artista carioca entre todos (sim, acima de Chico Buarque, Machado de Assis, Vinicius de Moraes, Di Cavalcanti e os outros), determinava que os sambistas se apresentassem sempre de pé e pescoço cobertos. Preferencialmente, de terno de linho e chapéu panamá. Líder antirracista muito antes de a expressão existir, ele lutava contra a repressão que marginalizava o samba – e a roupa importava. Como os outros, negociava com as autoridades simplesmente para a atividade não desaparecer.
Por incontáveis carnavais, os sambistas se embrenharam no adesismo. Primeiro, a história dos brancos – Duque de Caxias, Dom Pedro, santos católicos, Princesa Isabel, Tiradentes; depois, governos e seus mandatários; por fim, cidades, estados e países. Houve, em todos os períodos, resistência e tentativas de destacar as sagas de construtores da festa e seus ancestrais. “Em 1948, os enredos foram quase todos sobre os 60 anos da Abolição – mais até do que em 1988, no centenário”, lembra o pesquisador Mauro Cordeiro.
Os desfiles se iniciaram nos anos 1930, mas somente em 1960, os negros conquistaram protagonismo para suas narrativas, na ação pioneira de uma escola fundamental: o Salgueiro. Nele está inserido um professor branco, Fernando Pamplona, autor do enredo “Quilombo dos Palmares”, campeão em 1960, sob inspiração do livro de mesmo nome, escrito em 1946 por Edson Carneiro, escritor negro fundamental.
Mais recentemente, as escolas chegaram ao paroxismo de exaltar a ditadura de 1964. Aspectos do período de arbítrio foram para a avenida com Mangueira, Mocidade e, mais do que qualquer outra, Beija-Flor, que se permitiu uma bizarra – e empolgada! – trilogia do regime. Na democracia, seguiram alinhadas ao poder, apostando em temas alienantes, com exceções que serviram apenas para confirmar a regra (Caprichosos de Pilares 1985, Mangueira 1988, Império Serrano 1986 e 1996, por exemplo).
Precisou o Rio eleger um prefeito neopentecostal para as grifes do paticumbum mergulharem na virada. Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella empreendeu sabotagem impiedosa às escolas, enxugando subvenções, postergando prazos e decisões fundamentais para a complexa estrutura do desfile. Apesar de, na campanha, os cartolas da folia terem apoiado o sobrinho de Edir Macedo, dono da Universal, logo entenderam a barbeiragem e trocaram de lado.
O processo artístico de virar oposição se espalhou pelas escolas, num caminho sem volta. Em 2018, o arrebatador vampiro do Paraíso do Tuiuti lembrava o então presidente Michel Temer. A Mangueira, quinta colocada, bateu doído em Crivella e sua sanha predatória, em “Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco!”
Nunca mais parou, e hoje uma nova geração de carnavalescos assumiu a missão de seguir batendo nas mazelas nacionais. Leonardo Bora, Gabriel Haddad, André Rodrigues, Tarcísio Zanon, Marcus Ferreira, Guillherme Estevão, Annik Salmon e João Vitor Araújo consolidam o novo formato da folia.
Em 2020, oito das 12 escolas que formam a elite do samba desfilaram com temas críticos; a campeã Viradouro celebrou as ganhadeiras de Itapoã e o empoderamento feminino; a vice, Grande Rio, cantou o pai de santo Joãozinho da Gomeia com refrão educativo: “Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé/ Eu respeito seu amém/ Você respeita o meu axé“. Em 2022, a tricolor de Caxias combateu o preconceito contra Exu e conquistou título inédito. A azul e branco nilopolitana ficou em segundo com o libelo antirracista “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, reverência à intelectualidade negra.
Agora, em 2023, está longe de ser coincidência o fato de metade dos enredos buscar inspiração no Nordeste, a região mais petista do país. Unidos da Tijuca, Mangueira, Imperatriz, Beija-Flor, Mocidade e Vila Isabel passam por lá em seus desfiles. O Carnaval trocou de fantasia para sempre – e ficou melhor do que nunca.