Receba nossas notícias por e-mail. É de graça.

Vilma Nascimento, suas tâmaras e o racismo que machuca nossos mais velhos

Um aviso de que por, mais prêmios e honrarias que possamos receber, sempre vão nos lembrar que somos negros e que neste país somos odiados

ODS 10ODS 16 • Publicada em 27 de novembro de 2023 - 09:52 • Atualizada em 28 de novembro de 2023 - 08:41

Alguns anos atrás, Lenny Blue, importante ativista negra de São Paulo, me disse que nossa geração é composta pelas tâmaras que a dela plantou. Inclusive escrevi sobre isso nessa coluna. Vilma Nascimento é uma semeadora de tâmaras belíssimas, das mais impressionantes do Carnaval brasileiro. Mas antes de plantar, apreciar sua tamareira robusta e desfrutar de suas tâmaras, Vilma transformou-se em um grande monumento, alguém que deveria ser reconhecida e homenageada com toda a sorte de títulos, prêmios, faixas e celebrações em nosso país. Mas esse mesmo país que a homenageou também lhe traumatizou e constrangeu.

Leu essa? Geniais “coisas de preto”

Vilma Nascimento é daqueles mitos que merecem ser ovacionados sempre que passam. Uma mulher negra, baluarte, ícone da maior manifestação cultural do nosso país jamais deveria ser humilhada pelo violento racismo que, naquilo que parece sutileza despeja o pior nos brasileiros.

Como jovem de terreiro, apesar de ser já uma iyá, me preocupa imensamente o cuidado com nossos mais velhos. No terreiro o processo de envelhecimento de alguém é de uma sacralização única. Ser um mais velho confere respeito, primazia hierárquica, cuidados primorosos. Para quem é de terreiro o envelhecimento é uma busca por mais saber, por mais proximidade com o sagrado.

Penso que nas escolas de samba acontece coisa parecida – a devoção, amor, respeito com os baluartes, que são entidades vivas em uma agremiação, assemelha-se à preocupação que temos de orgulhar nossos mais velhos no cotidiano do terreiro.

Vilma sofre abordagem racista na Dufry do Aeroporto de Brasília. Reprodução do Instagram
Vilma sofre abordagem racista na Dufry do Aeroporto de Brasília. Reprodução do Instagram

Falta a esse país o letramento que o terreiro e a escola de samba ostentam. Letramento que não é somente racial, que perpassa compreender não quais as frases de efeito e o nome de duas ou três escritoras negras para falar quando se trata de racismo, mas o tipo de comportamento que devemos ter, o tipo de cidadão que olha as pessoas com respeito. A ausência desse tipo de letramento produz a barbaridade do que ocorreu com Vilma Nascimento um dia depois de ser homenageada pela Câmara dos Deputados, nas celebrações do Dia da Consciência Negra: ser vítima de racismo em uma loja no Aeroporto de Brasília.

Parece um aviso de que por mais prêmios e honrarias que possamos receber, sempre vai ter alguma situação ou pessoa para nos lembrar que somos negros e que neste país somos odiados. Assim como outras sábias, Vilma é seu próprio selo intelectual, termo cunhado por mim para descrever processos de formação de autoridade epistêmica das mulheres negras. Mesmo que nunca tenha escrito um artigo científico que seja, sua intelectualidade se impôs pelo majestoso bailado, que lhe conferiu marcas jamais conquistadas. Ser ensaiada por Vilma Nascimento é honraria robusta para as porta-bandeiras contemporâneas; estar na presença de Vilma Nascimento exige classe e elegância.

Contudo, o racismo e o etarismo violentam até mesmo mulheres do vulto de Vilma. Sabemos que o envelhecimento é um processo natural que ocorre com todos os seres humanos, porém é inegável que sair com nossas mais velhas é também expor seus corpos a esse sistema de dominação que nos quer submissas e subjugadas. O racismo afeta todos os aspectos sociais e não se torna mais suave com o envelhecimento. A abordagem racista que Vilma Nascimento sofreu lhe deixou traumas profundos e agravou problemas de saúde. É o tipo de consequência que a relação imbricada entre racismo e etarismo causa na vida de pessoas negras. Ou seja, o racismo afeta profundamente o envelhecimento.

A majestosa Vilma Nascimento jamais deveria ter tido seu belo olhar e impressionante sorriso apagados pela dor da violenta racista. Uma mulher que dedicou sua vida a encantar e enternecer com um bailado impecável, com rodopios precisos e elegantemente desenhados, que sempre será a maior craque da Portela, e que inclusive ganhou prêmio de melhor em campo mesmo lesionada (entendedores entenderão), não poderia reagir de outra forma que não denunciar e tomar todas as medidas cabíveis. A reação não restaura nem cura o trauma mas ao menos serve como grito de insubmissão contra essa violência.

Vilma é a personificação do símbolo da escola a quem dedicou a vida: uma águia majestosa, soberana, imponente. Voaremos com você, com a postura ensinada, na luta por um país que reconheça suas heroínas e no qual toda pessoa negra seja tratada com cortesia, respeito e dignidade.

 

Apoie o #Colabora

Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile