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Coluna | Prazer, neguinho

ODS 10ODS 16 • Publicada em 1 de julho de 2022 - 09:25 • Atualizada em 4 de julho de 2022 - 09:53

É negra a pele de quem agora pode se apresentar nesse lugar, agradecendo o espaço e a leitura quinzenal de reflexões que atravessam o cotidiano. Sou carimbado na construção de quem, através da cor, reexistiu e reexiste, apesar de conviver, a cada segundo, com a possibilidade de ser ‘eliminado’.

Dados do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança apontam que o país registrou em 2021 aproximadamente 47.503 vítimas de homicídio. E comparando com as análises dos anos anteriores, o peso da pele interfere sim nessa dinâmica, sendo mais alta a probabilidade de morrer do que uma pessoa branca. Eu poderia ser parte das 78% de vítimas de homicídios deste país ou ter integrado 84% das mortes advindas da violência policial.

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Mas se tá vivo, tá no ‘lucro’, certo?… Será? Escapar e burlar os caminhos percorridos até aqui não foi fácil; foi preciso traçar uma trajetória de estratégias para preservar a minha continuidade e a dos meus. E ainda assim, não saber lidar com as retaliações constantes ao simplesmente elaborar o mais tradicional ato entre os vivos: respirar.

E vivendo, ocupar espaços ‘nunca antes navegados’, fossem eles os mais comezinhos, como querer (e poder) assistir uma peça, mas sem ter que sofrer e denunciar racismo, como aconteceu com o estudante de Nutrição Fábio Nascimento, de 25 anos? E justamente numa apresentação onde encenavam a vida de um jovem que, após passar para a faculdade de Direito da UFRJ, passou a confrontar os ideais de justiça do Estado.

Com voz ativa pelos direitos, exercer seu poder de potência, verbalizando as demandas para construção de uma sociedade mais justa? Nem isso, e nem mesmo um parlamentar em exercício, como o vereador Renato Freitas (PT), da Câmara Municipal de Curitiba, que teve seu mandato cassado. Acusado de quebrar o decoro, o Renato perdeu seu posto político após marcar presença em um ato antirracista, que tomou a entrada de manifestantes na Igreja do Rosário, no Centro de Curitiba, no início do ano. Além de atribuírem a ele a liderança do protesto, a Renato foi imputado a culpa de perturbar o culto, despertando uma mobilização política dentro da igreja, frente ao altar.

Preconceito que não se acaba até mesmo quando se chega no ponto mais alto do status de uma referência, dentro de um ideário que privilegiou determinados corpos, determinada trajetória. Impensável seria crer que, algum dia, um piloto de Fórmula 1 negro poderia se tornar heptacampeão, e não apenas ser reconhecido como símbolo da luta, despertando a ira de quem não aceita perder o posto de voz única. Impensável não, porque é só deixar chegar que se mostra a potência; e a história não mente.

A partir dessa característica individual e também coletiva, já que 56% da população tem na marca esse tom, chego aqui – mas nunca sozinho, nem mesmo se eu quisesse. No jogo de quem se põe no jogo, chegando de mansinho, “me esquivando da ilusão pra não ficar pelo caminho’’, a gente tá aqui. Entendendo que nem tudo que reluz é ouro, e que navio negreiro não anda pra trás, a partir de quem viu o corre das ruas e becos. E tudo isso graças à mãe que pôs no mundo, os encontros que tive até aqui, as parcerias e ensinamentos, o amor e a saúde. Prazer, neguinho eu sou. E não apenas isso.

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2 comentários “Coluna | Prazer, neguinho

  1. Giovanni Benjamim disse:

    Acabei de ler seu artigo, e claro, pelo tempo, o vereador Renato Freitas estava nessa época cassado. Mas, graças aos deuses isso tudo foi revertido. Vamos seguindo nessa batalha, que nunca é justa a todos!

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