‘Os protestos mostraram uma fratura na sociedade cubana’

Curador cubano-brasileiro Rodolfo de Athayde analisa o cenário político-social da ilha, e aponta que o regime socialista enfrenta inédito conflito de classes, consequência da abertura econômica

Por Cristina Serra | ODS 16 • Publicada em 3 de agosto de 2021 - 09:02 • Atualizada em 16 de agosto de 2021 - 12:46

Protesto do dia 11 de julho em Havana: aumento do desabastecimento e descontrole da pandemia criaram condições para a revolta em Cuba. Foto Yamil Lage/AFP

As manifestações que eclodiram em Cuba mês passado não surpreenderam o curador de artes plásticas cubano-brasileiro Rodolfo de Athayde. Há meses, ele, 54 anos, acompanhava o crescimento de uma onda de insatisfação no mundo artístico e nas redes sociais, muito usadas pela juventude cubana e pela mídia independente.

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Ele avalia que o governo não considerou em toda a sua complexidade tensões sociais crescentes, sobretudo a partir da abertura econômica iniciada pelo sucessor de Fidel Castro, seu irmão Raúl. Essas medidas acabaram introduzindo aspecto novo no regime socialista cubano: o conflito de classes ou estamentos sociais. Ele também critica fortemente a repressão do governo do atual presidente, Diáz-Canel, aos protestos, numa escala, aponta, nunca vista antes em seu país.

O curador acredita que os cubanos resistiriam a uma intervenção dos Estados Unidos, que mantêm a ilha sob asfixiante bloqueio econômico. Mas ele pondera que isso não impede o anseio de parcela expressiva da população por liberdade de manifestação e opinião.

Filho do jornalista e poeta brasileiro Félix de Athayde (1932-1995) e de Noemí Crosas, cubana, Rodolfo estudou filosofia em Moscou, na época em que Mikhail Gorbatchev implantou mudanças políticas e econômicas – a Perestroika e a Glasnost – que levariam ao fim da União Soviética.

Atualmente, o curador mora entre Havana e o Rio de Janeiro. Aqui, apresentou ao público brasileiro exposições de vários artistas plásticos cubanos. Rodolfo de Athayde conversou com o #Colabora da sua casa na capital da ilha, Havana.

O curador Rodolfo de Athayde: "O governo deveria buscar uma concórdia, um meio-termo para não permitir que a sociedade cubana se frature no ressentimento e na violência. Isso pode acontecer porque os problemas vão continuar existindo por longo tempo e a base social que gritou está agora ressentida". Foto acervo pessoal
Rodolfo de Athayde: “O governo de Cuba deveria buscar uma concórdia, um meio-termo para não permitir que a sociedade cubana se frature no ressentimento e na violência. Isso pode acontecer porque os problemas vão continuar existindo por longo tempo e a base social que gritou está agora ressentida”. Foto acervo pessoal

#Colabora – Por que os protestos explodiram em Cuba?

A chance de que eclodisse um protesto desse gênero em Cuba estava no ar. Para mim, não foi surpresa. O bloqueio econômico dos Estados Unidos não é um fator novo. Os efeitos vêm se acumulando, especialmente desde as mais de 300 medidas que Donald Trump tomou e que tornaram o bloqueio mais duro. Isso criou situação de isolamento, de imensas dificuldades no comércio internacional, de queda na arrecadação de divisas e falta de investimentos. Além disso, o turismo parou por causa da pandemia e houve uma queda brusca das remessas dos cubanos que vivem no exterior, 80% deles nos Estados Unidos.

Nos últimos anos, Cuba tinha aberto sua economia, criando regiões especiais para desenvolvimento de negócios, para criar ambiente favorável ao investimento externo, com controle do Estado. Houve ainda esforço de facilitar a abertura de pequenos negócios, como restaurantes e cafés. Tudo ficou comprometido e se criou uma crise muito séria de abastecimento, com filas para adquirir produtos básicos. Os problemas da economia, o desabastecimento e mais a pandemia criaram um coquetel molotov complexo.

Nos primeiros momentos da pandemia, Cuba conseguiu resultados muito positivos. Parecia que a situação estava sob controle e, por necessidade, houve um momento de abertura, em que entraram pessoas vindas dos Estados Unidos e de outros países e saíram alguns cubanos para buscar mercadorias e se abastecer. Isso produziu a segunda onda da doença, que complicou seriamente a capacidade de atendimento, com falta de insumos básicos.

#Colabora – Como e onde começaram exatamente os protestos?

Começou em San Antonio de los Baños, no interior, onde fica a Escola Internacional de Cinema. É uma pequena cidade a 40 minutos de Havana, que tem grande ligação com intelectuais. É ali que acontece a primeira manifestação, a partir das redes sociais. Ao longo do domingo 11 de julho, as os protestos se espalharam de forma muito rápida. Os cubanos usam muito o WhatsApp e o Facebook. Não sei se foram youtubers que incentivaram. O que eu vi, e uso rede social, foi um encadeamento contínuo de notícias que chegavam de todos os lados, vindo de anônimos. Há um aspecto importante que tem a ver com a questão da política cultural em Cuba. O 11 de Julho foi precedido por manifestações anteriores que já expressavam um caráter político.

#Colabora – Qual o alcance dessas manifestações anteriores?

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Primeiro, aconteceu a do grupo de San Isidro. São artistas que se juntaram, neste bairro de Havana que é muito pobre. É preciso entender que em Cuba o artista precisa do reconhecimento do Estado para atuar. Estes artistas não têm esse reconhecimento, mas fazem arte assim mesmo. Um deles, mais conhecido, Luís Manuel Otero Alcântara, tinha feito performances em frente a hotéis de luxo, que estavam sendo construídos em Havana. Para construir um desses hotéis, retiraram a estátua de um dos líderes comunistas cubanos, Julio Antonio Mella, dos anos 1930. O artista foi para o local e se postou lá como uma estátua, totalmente imóvel, botando na cara uma caixa de papelão com a foto do homenageado no monumento e uma pergunta escrita no corpo: “Onde está Julio Antonio Mella?”. Isso foi um ano e meio atrás. Nesse ínterim, o governo publicou o Decreto 349, que definiu regras para o trabalho dos artistas, como eles podem ou não fazer a sua arte. Foi um delimitador ideológico quanto aos conteúdos da arte e às formas de apresentação dos artistas.

#Colabora – O decreto foi para manifestações públicas dos artistas, as performances, ou para o trabalho artístico de maneira geral?

Foi dirigido à criação artística de um modo geral. Historicamente, as artes plásticas cubanas têm tido papel crítico, de chamar atenção para os problemas da sociedade. Vem desde os anos 1980. E a nova geração retomou um pouco este papel. As pessoas se manifestaram contra o decreto. Trabalho com isso e posso dizer que Cuba tinha alcançado liberdade criativa considerável, dentro dos conceitos de uma sociedade controlada, digamos assim. Recebia gente de todas as partes do mundo, realizava-se uma Bienal muito exitosa e começaram a pulular espaços artísticos e galerias independentes. O ato do Luís Manuel Otero Alcântara levou a protestos de outros artistas. Foi uma bola de neve.

Defensor do governo de Miguel Diaz-Cnal ergue o cartaz com a frase histórica: “Viva a revolução cubana!” Foto Yamil Lage/AFP

#Colabora – Além do decreto, como o governo reagiu aos protestos?

Houve diálogos e confrontações com o Ministério da Cultura. No meio dessa história, o rapper – ou reguetonero, como se diz em Cuba – Denis Solís foi levado preso e condenado, num julgamento sumário, a oito meses de prisão por desacato à autoridade. O Luís Otero Alcântara é muito amigo dele e junto com umas dez pessoas fizeram protesto público contra a prisão, em San Isidro. Foram interpelados pela polícia e se declararam em greve de fome. Todos foram presos e soltos posteriormente, sob regime de vigilância. O Luís Manuel Otero Alcântara decidiu fazer outra performance, e transmitiu ao vivo pelo Facebook. Ele se mostrou sentado num instrumento de tortura chamado “garrote vil”, como se fazia com os escravos antigamente, tanto em Cuba como no Brasil. Isso provocou uma segunda greve de fome e o Luís Manuel acabou sendo levado para o hospital, onde ficou detido por mais de 20 dias, em novembro do ano passado.

#Colabora – Você disse que houve diálogo também. Como isso aconteceu?

Depois desses protestos, em 27 de novembro vários artistas foram ao Ministério da Cultura, pedindo ao governo respeito com a criação artística, liberdade de expressão etc. Ao longo do dia, as pessoas foram se juntando. Começou com dez pessoas e acabou com cerca de mil na frente do ministério. O vice-ministro concordou em abrir canal de diálogo com os manifestantes e houve um acordo sobre como a negociação deveria prosseguir. Mas as detenções continuaram, policiais começaram a aparecer na frente da casa dos líderes do movimento e de jornalistas independentes, impedindo sua circulação. O jornalismo independente não é aceito pelo governo. Em janeiro, outro grupo voltou a se manifestar. Havia uma reunião marcada com o vice-ministro, que nunca aconteceu porque os artistas estabeleceram como condição que parasse a repressão contra seus colegas e que libertassem os que estavam presos.

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Todos sabem que o bloqueio é vergonhoso. Mas é preciso ouvir o povo. As manifestações em Cuba não foram de quatro gatos pingados. Há uma população pobre, muito parecida com a do Brasil, que foi para as ruas gritar em mais de 30 cidades. Em algumas, foram milhares de pessoas. É um alarme muito importante para medir o nível de insatisfação popular

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#Colabora – Isso foi em janeiro. Daí para os protestos de julho, passou um semestre inteiro.

Acontece que a mídia independente em Cuba começou a crescer por meio das redes sociais. Alguns, de fato, têm financiamento de organizações internacionais, inclusive dos Estados Unidos. Os financiamentos não aparecem de forma explícita e não são grandes, mas permitem o funcionamento desses meios. Isso criou realidade nova na circulação das informações, que passou a ser muito mais dinâmica. Os artistas e jornalistas fazem parte de uma geração muito jovem, abaixo de 30 anos, recém-saída da faculdade e formada completamente dentro da revolução. Muitos estavam nesses protestos. Começaram a aparecer os primeiros testemunhos de violência policial, que foram muito divulgados nas redes. No meu entender, perdeu-se uma chance muito importante de um canal de diálogo com a sociedade. Esses jovens estavam expressando boa parte das ansiedades e preocupações do que iria aparecer depois, no 11 de Julho.

#Colabora – Por que a dificuldade de abrir o diálogo?

A meu ver, o governo errou ao não ter um pouco mais de paciência, compreensão da situação da crise, capacidade de ouvir o outro. Poderia ter tentado estabelecer diálogo um pouco mais franco e dialético. As pessoas que estavam se manifestando não eram, necessariamente, parte de um complô dos Estados Unidos. Conheço muitos desses artistas, gente que faz um trabalho muito genuíno e importante. Gente que tem uma obra que ajuda a entender a história contemporânea de Cuba. Na mesma época em que tudo isso aconteceu, também ocorreram atos do que se pode chamar a oposição clássica em Cuba. São pessoas que têm agenda política, é a oposição tradicional, que realmente tem um vínculo com os Estados Unidos e com a comunidade cubana de lá e que faz o confronto permanente.

#Colabora – Pelo que entendi, a geração mais jovem e as manifestações dos artistas, somadas à maneira como o governo reagiu a elas, criaram a efervescência que desembocou no 11 de Julho. Foi isso?

São vários fatores. Teve uma faísca, que são esses jovens artistas, com a situação objetiva de carências e dificuldades econômicas do país. Isso é um caldo explosivo porque esses garotos demonstraram que é possível se mobilizar fora dos canais estabelecidos para apresentar as suas queixas. É uma juventude que já nasceu dentro de certa liberdade de informação, que viaja ou que recebe muita informação externa e que lê muito. Eu diria também que esses jovens têm uma linguagem contemporânea que se choca com a linguagem analógica que o governo usa nas suas formas de propaganda e comunicação. Há, a meu ver, um cansaço de fórmulas de linguagem, que são repetitivas e que, muitas vezes, não se ajustam aos fatos reais. Eu considero que parte dessa juventude vinculada à cultura foi um antecedente importante que gerou as manifestações.

#Colabora – Ou seja, os artistas acabaram expondo uma tensão social que já estava ocorrendo?

Percebo que existiam alguns elementos na sociedade cubana que a gente pode chamar de conflito de estamentos ou de classes. Quando a gente fala de uma sociedade socialista, tende a negar o conflito classista porque pressupomos que os habitantes conformam um corpo social único e coeso e que têm no seu governo uma expressão da vontade popular. Em Cuba, acredito que o carisma do Fidel Castro conseguia manter essa coesão, mesmo nos períodos mais difíceis, como no fim da União Soviética.

Com a morte do Fidel, o Raúl [Castro] adotou políticas mais pragmáticas, no sentido da abertura econômica e de alguns temas sociais, como a liberdade de viajar, de ter seu telefone, de entrar nos hotéis de turismo, enfim, uma série de coisas que antigamente tinham limites que isolavam os cubanos numa espécie de apartheid em relação ao turismo. Essa situação também levou à criação de uma classe vinculada aos negócios, aos investimentos estrangeiros e à própria política. Gente que começou a viver mais perto dos padrões das classes média e alta. Não de milionários, mas de pessoas que tinham dinheiro suficiente para um nível de vida diferente. Me dói dizer isso, mas o governo e o partido não perceberam que existia uma insatisfação social acumulada, que se fez mais caótica no último ano e que estava centrada, basicamente, no interior do país e nos bairros mais pobres das grandes cidades, evidenciando um conflito de classes no interior da sociedade cubana.

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A repressão é um erro grave. Uma coisa é manter a ordem, outra é reprimir as pessoas de forma violenta e encarcerá-las por delito de opinião. Deslegitima a ideia do socialismo, pelo qual minha mãe e eu sempre lutamos. Cuba tem uma simbologia importante para a esquerda em todo o mundo. Corremos o risco de perder isso, se já não foi perdido

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#Colabora – Há duas linhas que levam ao 11 de Julho, segundo você relata: a existência de diferentes níveis socioeconômicos entre as pessoas, em Cuba, e essa juventude ligada às artes e conectada com o mundo exterior. São, portanto, duas grandes vertentes de insatisfação que se encontram nos protestos recentes?

Sim. É preciso ter em conta também que a sociedade cubana tem um vínculo muito grande com os três milhões de cubanos vivendo nos Estados Unidos, a maioria na Flórida. É uma comunicação forte e contínua entre essa comunidade e a ilha. A comunidade cubana lá é muito favorecida pela política interna dos Estados Unidos. É próspera, com níveis de vida e de consumo muito distantes para o cubano médio. Nessa relação contínua com seus parentes e amigos de lá, os cubanos percebem parâmetros comparativos muito chocantes. Eles se comparam com uma comunidade especial, privilegiada, de contexto político e econômico específico, que tem certas vantagens lá. Acho que o cubano médio tem consciência do valor da saúde e da educação públicas em Cuba. Mas o padrão de vida que ele tem como referência é o do parente que mora nos Estados Unidos, que é muito distorcido. Evidentemente, isso influencia nas aspirações dos cubanos do povo, que precisam enfrentar longas filas, cortes de eletricidade, falta de medicamentos básicos e desabastecimento geral, somado à inflação provocada pelo ajuste monetário feito pelo governo no meio da pandemia.

#Colabora – O que vai acontecer agora, quais os desdobramentos dos protestos?

Considero que no 11 de Julho houve uma fratura na sociedade cubana. A situação atual é de um espalhamento dos mecanismos repressivos para evitar os protestos. Muitos que se manifestaram foram presos e podem ser condenados. Sei que no meio disso tudo acontece vandalismo, alguma ação violenta. Eu vivi na Rússia, quando ainda era União Soviética, estava lá no período da Perestroika, exatamente o período de transformação e de crise dessa sociedade, quando ela já não acreditava em si mesma. A universidade onde estudei era, digamos, a cozinha ideológica da Perestroika. Ali se fermentavam as ideias dos pensadores e políticos da União Soviética na época. Participei das manifestações e viajei pela Polônia, Alemanha [antiga Alemanha Oriental], quando começaram as quedas consecutivas dos regimes do socialismo real europeu, como um efeito dominó. Vejo o que está acontecendo em Cuba comparando com esses acontecimentos.

#Colabora – Pode acontecer algo parecido em Cuba?

Não me arrisco a dizer isso, embora seja possível. São situações distintas entre aqueles países e Cuba atualmente. A grande ameaça de Cuba tem sido sempre os Estados Unidos e sempre paira a possibilidade de perdermos a nossa independência. Para permitir políticas mais abertas, sabe-se que há o risco de introduzir o vírus intervencionista [dos Estados Unidos] ou de abrir a janela para outras ideias no campo da política. Dada a situação de descontentamento, as pessoas podem optar pela negação e não pela via racional de construir alternativas de corte social. A negação seria, basicamente, uma política neoliberal, em que o grande capital entraria e mudaria tudo em muito pouco tempo, considerando uma economia pequena como a nossa. Isso teria terríveis custos sociais para Cuba.

Acho que os cubanos têm isso claro, inclusive os que participaram dos protestos. As pessoas não querem os americanos aqui. Se tentarem invadir Cuba, o povo pega no fuzil. Eu também vou defender a minha pátria. Mas, por outro lado, eu discordo do discurso oficial, que tenta reduzir o 11 de Julho a um grupo de meliantes ou marginais. Quando vejo isso, me pergunto: para quem é a Revolução? É para essa gente, para os que não têm nada ou que têm pouco. A sociedade cubana teve uma redução significativa das diferenças sociais, entre os que ganhavam mais e os que ganhavam menos, especialmente nos anos 1980. Mas, com a queda da União Soviética, esse panorama mudou e a sociedade cubana se viu obrigada a introduzir mecanismos de mercado, a criar diferenças sociais. Isso criou uma situação muito complexa para o socialismo.

#Colabora – Qual foi a intensidade de repressão aos protestos?

Nunca imaginei que veria as forças policiais cubanas batendo nas pessoas. Fui um jovem comunista exemplar na minha juventude. Por ter opiniões divergentes,  acabei sendo expulso da universidade e preso pelos órgãos de segurança do estado cubano. Mas sou uma pessoa de esquerda. Nunca tinha havido uma repressão nessa escala. Nem em 1994, no “Maleconazo” (marcha de protesto no Malecón, avenida litorânea de Havana). A repressão é um erro grave. Uma coisa é manter a ordem, outra é reprimir as pessoas de forma violenta e encarcerá-las por delito de opinião. Outra coisa que não havia acontecido antes é ofender o presidente de forma grosseira, como fizeram com Diáz-Canel. As pessoas nunca ofenderam Fidel dessa forma, exceto os mais reacionários e ressentidos. Os gritos dos manifestantes eram “Liberdade” e “Pátria y Vida”, uma canção de artistas cubanos que vivem no exílio e que vingou de forma muito positiva, se opondo ao lema de Fidel, “Pátria o Muerte”.

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O cubano médio tem consciência do valor da saúde e da educação públicas em Cuba. Mas o padrão de vida que tem como referência é o do parente que mora nos Estados Unidos, que é muito distorcido. Isso influencia nas aspirações dos cubanos do povo, que precisam enfrentar longas filas, cortes de eletricidade, falta de medicamentos básicos e desabastecimento geral, somado à inflação provocada pelo ajuste monetário feito pelo governo no meio da pandemia

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#Colabora – O bloqueio norte-americano asfixia a economia cubana, de fato, mas, pelo que estou entendendo, não é mais um argumento suficiente que justifique um regime fechado para a juventude cubana que foi às ruas.

A conclusão básica pode ser essa. Todos sabem que o bloqueio é vergonhoso. Mas é preciso ouvir o povo. As manifestações em Cuba não foram de quatro gatos pingados. Há uma população pobre, muito parecida com a população pobre do Brasil, que foi para as ruas gritar em mais de 30 cidades. Em algumas cidades, foram milhares de pessoas. É um alarme muito importante para medir o nível de insatisfação popular e para saber que o momento é de tomar medidas que aliviem a situação difícil do povo cubano. A repressão seria a última das opções. O desfile repressivo, inclusive, teve algumas coisas que eu diria fora da legalidade.

#Colabora – Por exemplo?

Por exemplo, agentes armados com paus, paramilitares vestidos como civis e misturados aos manifestantes. Isso é um erro grave. Do ponto de vista constitucional, são as forças da ordem que devem assumir essa tarefa. Não entendo por que o governo não teve a paciência de acompanhar as manifestações, evitando desordem, permitindo que as pessoas dessem o seu recado e voltassem para suas casas, sem sofrer o dano irreversível que implica o exercício da violência. Num estado como o cubano – que ao longo de tantos anos tem sempre falado que o Estado é do povo e que tem uma visão diferente dos demais países na América Latina e em todo o Terceiro Mundo – para mim, isso é uma dor bastante aguda.

#Colabora – Qual é a saída?

O governo deveria buscar uma concórdia, um meio-termo para não permitir que a sociedade cubana se frature no ressentimento e na violência. Isso pode acontecer porque os problemas vão continuar existindo por longo tempo e a base social que gritou está agora ressentida. Esse tipo de atitude, a violência do Estado, é o que faz a direita latino-americana. Na Revolução Cubana, em que nasci e me criei, existia solidariedade e a dignidade de sermos todos iguais. Essa dignidade existia em Cuba.

#Colabora – Existia? Não mais?

Existe uma Cuba digna, que continua a ter uma visão social e do Estado protetor que assegura os bens sociais, como saúde e educação. Mas esses dois aspectos, que são pilares fundamentais da Revolução Cubana, entraram num estado de precariedade por razões econômicas objetivas, mas também por algumas falhas. E aí a balança começa a falhar. As pessoas se perguntam se compensa uma coisa ou outra. É uma questão delicada. Os manifestantes podem estar, inclusive, errados em algumas coisas. Mas, impor determinados tipos de controle e de formas sociais na pancada deslegitima a ideia do socialismo, pelo qual minha mãe e eu sempre lutamos. Cuba tem uma simbologia importante para a esquerda em todo o mundo. Corremos o risco de perder isso, se já não foi perdido. Se eu estivesse no poder, permitiria as manifestações. Que fossem acompanhadas pela polícia, mas o direito de expressar opinião deveria ser garantido por lei. E repreenderia quem, nas forças da ordem, cometeu excessos de violência contra pessoas desarmadas, em nome do Estado.

Cristina Serra

Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Leia Livros e Jornal do Brasil, da revista Veja e da Rede Globo. Cobriu o desastre de Mariana, em 2015, para o Fantástico. Escreveu o livro "Tragédia em Mariana - A história do maior desastre ambiental do Brasil" (Record).

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