A noite amena, finalzinho do verão, corria alegre num bar de cervejas artesanais em Botafogo, cenário da bissexta reunião de uma confraria que une jovens e outros um pouco menos. O Flamengo jogava no Equador (e colhia rara vitória naqueles tempos pré-zilionários); crianças de todas as torcidas (e idades) começavam a juntar figurinhas para o álbum da Copa do Mundo que seria jogada na Rússia; Michel Temer sangrava no poder entre denúncias variadas; o então ex-presidente Lula batalhava no STF contra a decretação de sua prisão.
Perto de 22h, pipocou a mensagem devastadora: “Parece que mataram a Marielle”.
Leu essa? Dia de cobranças e protestos
A primeira reação foi, claro, de negação – “isso TEM que estar errado!” Alguém com tanta energia, potência emergente da política brasileira, querida por cariocas pobres, ricos e remediados, não. Ela não! Vereadora havia pouco mais de um ano, eleita pelo voto de várias regiões e classes sociais, materializava a esperança de um Rio, um Brasil melhores, o delírio possível de uma terra mais fraterna, inclusiva, plural.
Mataram.
Mataram mesmo.
Nascida no Conjunto de Favelas da Maré e formada em Ciências Sociais pela PUC, Marielle Franco retratava a conjugação do melhor das duas cidades que vivem nesta terra ensolarada, violenta e intolerante. Venceu o abismo imobilizador da desigualdade para oferecer o sonho um tempo menos injusto. Produtiva ao extremo, trabalhava com comovente empolgação, dobrando a aposta no diálogo como estrada para a mudança.
Encarnava a figura pública que semeia orgulho. O sorriso franco, tatuado no rosto, servia de assinatura ao estilo acolhedor, receptivo, de quem levantou da cama, hoje e sempre, para agregar, convidar à evolução. Com ela não havia espaço para retrocessos.
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Veja o que já enviamosTodo o repertório passou pela memória ainda fresca do derradeiro encontro, na Nova Holanda, comunidade da Maré, no Movimentos, reunião-trincheira de ativistas na luta para estancar o cotidiano banho de sangue e levar cidadania ao povo favelado. O “marido da Flávia” (melhor papel que existe) ganhei abraço intenso, sincero, arrematado com aquele sorriso.
Era alta, Marielle.
A esquina no início da Zona Norte, perto de onde Donga, Ismael Silva e outros bambas inventaram o samba, a passos da Prefeitura, estava apinhada de humanos atarantados, incrédulos da tragédia. O carro branco, típico dos serviços por aplicativo, perfurado de balas, parecia mal estacionado, torto em relação ao meio-fio, na via desértica, de passagem, órfã de residências. Os corpos de Marielle e do motorista Anderson Gomes, também vítima da fuzilaria, jaziam na via pública, à espera da perícia, entre outros protocolos das mortes violentas.
Um premiado repórter, catedrático nos maneirismos policiais, previa a identificação ligeira de mandantes e autores. “Crimes com essa repercussão têm solução rápida”, apostou, em inesquecível equívoco. O que acontecera ali não tinha paralelo, mesmo no eterno banho de sangue da terra carioca. Marielle não era qualquer uma – até na hora da sua absurda, inaceitável morte.
A madrugada de quarta-feira, 19, ia alta quando deixamos o local do crime, sem saber o que seria do futuro. O assassinato abriu as portas do inferno para o Brasil. Marielle Franco morreu muitas outras vezes, nas fake news que se espalharam, associando-a a criminosos e episódios mais bizarros. A reação não tardou; manifestações enormes ganharam as ruas, e a repercussão se espalhou pelo mundo.
Surgiu símbolo forte como sua homenageada: uma placa, semelhante às que se encontram nas esquinas, com a inscrição “Rua Marielle Franco”. Enquanto o logradouro não ganhava a vida real, o objeto se reproduziu aos milhões, no protesto contundente pelo crime superviolento.
Mas as sombras venceram de novo. Na eleição daquele ano, o Rio escolheu como governador um tresloucado ex-juiz que prometia “atirar na cabecinha” de quem portasse armas nas favelas. Numa cena para a eternidade, ele e um postulante a deputado estamparam sorrisos macabros em pose com a placa icônica aos pedaços. Surfaram monstruosos num assassinato – e ganharam.
Pior: na mesma votação, o Brasil elegeu o pior presidente de sua história e mergulhou num pesadelo que durou quatro anos. Os adversários de Marielle, e do país pelo qual ela batalhou, venceram – e terraplanistas, fanáticos religiosos, racistas, adoradores da morte, misóginos, destruidores da floresta, LGBTfóbicos, demófobos e picaretas variados se aboletaram no poder. O povo pobre e preto foi massacrado, a democracia ameaçada, retrocessos infestaram todos os setores da vida brasileira.
(Na eleição em que Marielle se tornou vereadora pelo PSOL, em 2016, o Rio inventou de escolher para prefeito um bispo neopentecostal que fez a cidade retroceder em muitos aspectos. Cariocas e fluminenses, na hora de votar, produzem barbaridades surrealistas.)
O martírio transformou a socióloga em ícone, ampliando sua fama em escala planetária. No ano seguinte à sua morte, a Mangueira ganhou o Carnaval com o último samba que conseguiu romper a bolha da folia. “Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”, pede a canção de um grupo de compositores liderados por Manu da Cuíca, autora da letra. Sugestão vã, que o país insiste em não acatar.
Cinco anos depois do crime teimosamente impune, não há pista dos mandantes. Os responsáveis pela investigação e seus chefes – os governantes – passam a cotidiana vergonha da falta de respostas. Segue tudo parecido: na Maré que deu Marielle ao Brasil, nove entre dez mortes durante operações policiais têm indícios de execução, cometidas com tiros à queima-roupa ou nas costas das vítimas. Um exemplo entre muitos.
Mas a esperança recrudesce – e a irmã caçula da vereadora, Anielle Franco, assumiu, no governo Lula, o Ministério da Igualdade Racial (na posse, o samba-enredo foi cantado, para ninguém esquecer). Seus primeiros movimentos mostram que firmeza, caráter e vocação de liderança estão no DNA da família. Com ela, o Brasil ganha – mesmo sem merecer – nova chance de melhorar.
Marielle presente!