Violência policial é estopim de protestos por mudanças na Nigéria

Manifestante com bandeira da Nigéria e a exigência de fim de esquadrão acusado de violência: hashtag #EmdSARS mobilizou nigerianos e espalhou protesto por outros países (Foto: Pius Utomi EKpei / AFP)

Jovens usam redes sociais e hashtag #EndSARS contra esquadrão de elite; pesquisadora vê raiva reprimida por alta de preços, fome e má administração

Por The Conversation | ODS 16 • Publicada em 21 de outubro de 2020 - 14:25 • Atualizada em 24 de outubro de 2020 - 10:12

Manifestante com bandeira da Nigéria e a exigência de fim de esquadrão acusado de violência: hashtag #EmdSARS mobilizou nigerianos e espalhou protesto por outros países (Foto: Pius Utomi EKpei / AFP)

Em 1992, o Esquadrão Especial Anti-Roubo (SARS, na sigla em inglês para Special Anti-Robbery Squad) foi criado pelo Comissariado da Polícia da Nigéria, principal órgão de segurança, para conter uma onda de assaltos à mão armada no país africano Em 2009, O SARS tornou-se uma unidade grande e poderosa, e seu foco se expandiu para, além de ladrões armados, fraudadores de internet e outros crimes. Também havia se tornado um esquadrão totalmente descontrolado.

Membros da unidade podiam portar armas, dirigir carros não identificados e operar sem crachás ou uniforme. Eles se tornaram conhecidos por seu assédio violento a jovens nigerianos inocentes. Eles também forçaram os jovens nigerianos a sacar dinheiro do ATMS e fazer transferências sob coação. Existem inúmeros exemplos de pessoas que foram estupradas, assediadas, açoitadas, extorquidas, feridas ou mortas pela unidade.

Em 2016, foi lançada uma campanha pedindo a dissolução do SARS. Ela se espalhou e chamou alguma atenção. Em três anos, a unidade foi reformada, revisada, descentralizada e desativada três ou quatro vezes. Mas sempre retornava. Agora, no início de outubro, começaram os novos protestos contra o infame esquadrão da polícia. Nigerianos – jovens na grande –  se reuniram em frente à Assembleia Legislativa no estado de Lagos, para exigir o fim da unidade (a Assembleia fica na cidade de Ikeja, a 20 quilômetros de Lagos, maior cidade do país, com mais de 7 milhões de habitantes e ex-capital federal). Em poucos dias, milhares de manifestantes se reuniram nas principais cidades do país e em 100 cidades ao redor do mundo, com a hashtag #EndSARS se espalhando globalmente.

O governo anunciou em 11 de outubro que, mais uma vez, estava dissolvendo o Esquadrão Especial Anti-Roubo. Mas os manifestantes não desistiram. Eles agora estão clamando por reformas mais amplas na polícia. (Na terça-feira, 20/10, a polícia dissolveu a tiros uma manifestação em Lagos: a Anistia Internacional denunciou a morte de 15 pessoas. Pelo menos, outras 15 já haviam morrido desde o início dos protestos. Manifestantes incendiaram unidades e veículos da polícia em outras cidades. Lagos, capital econômica do país, está sob toque de recolher: nota do tradutor)

A pesquisadora  Damilola Agbalajobi, do Departamento de Ciências Políticas, da Universidade Obafemi Awolowo, na cidade nigeriana de Ifé, foi entrevista pelo editor do The Conversation na África Ocidental, Adejuwon Soyinka, para explicar por que os protestos de 2020 são diferentes e quais poderiam ser suas implicações políticas.

´Polícia atira bombas de gás contra manifestantes na Nigéria: sobe número de mortes em protesto contra brutalidade policial (Foto: Kola Sulaimon / AFP)
´Polícia atira bombas de gás contra manifestantes na Nigéria: sobe número de mortes em protesto contra brutalidade policial (Foto: Kola Sulaimon / AFP)

The Conversation: O que torna esses protestos diferentes?

Damilola Agbalajob – Em primeiro lugar, o protesto não é apenas sobre o Esquadrão Especial Anti-Roubo. É o resultado da raiva reprimida sobre as políticas desumanizantes do governo, má administração, injustiça, fome, bem como os altos preços da energia e do combustível. O efeito cumulativo dessas queixas desaguou sobre a violência polícial. É por isso que os manifestantes se recusaram a encerrar sua ação. Parece que isso é visto como uma oportunidade única na vida para lidar com injustiças nacionais críticas.

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A história e a experiência que a Nigéria teve durante a era militar não ressoam tanto entre os jovens nigerianos. Mas eles devem ter lido a história e, portanto, não desconhecem o passado. Eles provaram que não podem ser dissuadidos pelo uso de qualquer tipo de força.

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Esta geração de jovens nigerianos está fazendo um bom trabalho. Há uma boa coordenação, foram feitos arranjos para comida e água, bem como música para mantê-los ocupados. Eles têm equipe médica de prontidão, ambulâncias e banheiros móveis para sua conveniência. Eles também contrataram seguranças particulares (seguranças) para proteção, levantaram dinheiro e garantiram que as propriedades estão seguras.
Eles também deixaram claro que não têm líder. Isso pode ser resultado da desconfiança dos líderes anteriores.

A Nigéria é considerada a capital mundial da pobreza. Mesmo assim, os jovens nigerianos protestam há mais de uma semana em todo o país, sem saquear lojas. Eles garantiram que as ruas sejam limpas após o protesto do dia e que não haja violência ou ilegalidade. Outro fator chave que torna este protesto único é o uso das redes sociais. A maneira como isso ajudou a mobilizar os manifestantes não tem precedentes.

Por que os protestos foram promovidos por jovens nigerianos?

Mais de 70% da população está abaixo dos 30 anos de idade. O desemprego atingiu 21,7 milhões no segundo trimestre de 2020. Os jovens respondem por 13,9 milhões deste. Os jovens nigerianos são, portanto, os mais afetados pelas políticas governamentais que levaram à falta de empregos e fontes significativas de sustento. Outros gatilhos incluem o estilo de vida luxuoso dos líderes políticos. O governo orçamenta mais dinheiro para os membros da Assembleia Nacional do que para saúde e educação.

Manifestação no aeroporto de Lagos: jovens lideram protestos contra a polícia e também contra o governo (Foto: Benson Ibeabuchi / AFP)

Existem lições importantes desse protesto?

Uma lição é que um novo contrato social está sendo escrito. Os nigerianos estão criando uma nova compreensão de como os líderes e funcionários públicos devem se relacionar com os cidadãos. Em segundo lugar, os jovens estão reinventando a governança na Nigéria e trazendo uma nova cultura de afirmação de direitos entre os cidadãos.

A maioria dos manifestantes nunca experimentou o regime militar. Isso é significativo?

Os 30% dos nigerianos que são adultos e passaram pelo regime militar parecem ter isso profundamente gravado em sua psique. Eles têm medo de um homem de uniforme. Isso se tornou parte do condicionamento dos nigerianos (O regime militar acabou em 1999, após15 anos de ditadura: nota do tradutor)

No entanto, os jovens acreditam que os homens de uniforme devem servir aos cidadãos e protegê-los. É um relacionamento totalmente diferente. Os jovens estão mais expostos ao fato de que as coisas poderiam ser melhores e estão prontos para assumir seu destino nas próprias mãos. Eles querem reinventar o país e ser um lugar melhor para se viver.

Seu acesso à internet também informa sua ação. Eles são capazes de alcançar o mundo do seu quarto.

A história do regime militar da Nigéria está desaparecendo?

A história e a experiência que a Nigéria teve durante a era militar não ressoam tanto entre os jovens nigerianos. Mas eles devem ter lido a história e, portanto, não desconhecem o passado. Eles provaram que não podem ser dissuadidos pelo uso de qualquer tipo de força.

A exclusão política dos jovens teve algum papel?

Por muitos anos, a Nigéria foi governada por líderes bastante idosos. Eles não conseguiram encontrar soluções para os desafios da nação. A corrupção e a fome são abundantes. É óbvio que os jovens nigerianos se sentem alienados e agora estão prontos para pegar o touro pelos chifres e garantir a boa governança.

Quais são as prováveis ​​implicações políticas dos protestos?

Políticos e líderes estão despertando para uma nova sociedade politicamente consciente. Veja o comentário do Presidente do Fórum de Governadores da Nigéria, Kayode Fayemi do Estado de Ekiti: ‘Não há nada de errado no que os jovens estão fazendo. Acho que devemos incentivá-los a fazer mais perguntas’. Vários governos estaduais estão começando a perceber a importância de ter um bom relacionamento com os jovens. Dado o despertar desta nova consciência política, não será business as usual para os líderes políticos do país.

(Tradução: Oscar Valporto)

The Conversation

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